Gestão e Qualidade | 4 de outubro de 2020

Entidades nacionais da saúde repudiam consultas públicas 911 e 912 da ANVISA  

Representantes do setor consideram que há enormes riscos para a segurança e confiabilidade dos exames laboratoriais
Entidades nacionais da saúde repudiam consultas públicas 911 e 912 da ANVISA  

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu duas consultas públicas (911 e 912) que repercutiram negativamente junto ao setor de Análises Clínicas. Entidades como a Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC), Conselhos de Farmácia, Abramed, Fehosul e FEHOESP alertam que o movimento pode vir a banalizar os atendimentos por ir contra preceitos sedimentados ao longo dos anos, principalmente referente ao ambiente onde é realizado os exames, assim como na qualidade e confiabilidade dos resultados laboratoriais. Ambas as consultas estão abertas para receber sugestões até o dia 23 de outubro.

Conforme explica o Conselho Federal de Farmácia (CFF), “na proposta, os exames laboratoriais foram diminuídos à nomenclatura de testes. Houve negligência ao responsável técnico legalmente habilitado e foram totalmente desconsiderados os laboratórios clínicos, possibilitando que outros estabelecimentos e profissionais não legalmente habilitados executem tais procedimentos”, diz nota da entidade.

SBAC

Em nota oficial, a SBAC diz que “As consultas públicas 911 e 912 da Anvisa colocam a saúde pública em risco através do desmanche da instituição laboratorial que conhecemos hoje, reconhecida internacionalmente como o centro da realização de exames de análises clínicas. Se forem aprovadas, representam grave perigo à segurança dos pacientes, pois fragilizam o controle sanitário e a garantia da qualidade. Sem a realização do controle de qualidade interno e externo, os resultados dos testes realizados fora dos laboratórios não apresentarão a mesma confiabilidade e precisão inerente às análises clínicas, podendo levar a um diagnóstico médico equivocado. ”

Em entrevista ao portal do Setor Saúde, o presidente da SBAC, Luiz Fernando Barcelos, demonstrou insatisfação com as Consultas. A SBAC é a favor da renovação da RDC 302, hoje vigente, mas não aos moldes como apontam as consultas públicas 911 e 912.


“A Anvisa está rasgando a RDC 302 e criando uma nova norma que nada tem a ver com o que estava estabelecido”, critica Barcelos. A RDC 302 é responsável por regulamentar as regras para o funcionamento dos serviços que realizam atividades laboratoriais, tais como Laboratório Clínico e Posto de Coleta Laboratorial.

Na visão de Barcelos, as mudanças são um desrespeito aos laboratórios de análises clínicas (o Brasil conta com 8 a 10 mil instituições), seus profissionais e à sociedade. Barcelos entende que deveriam ser discutidas atualizações nas normas estabelecidas pela RDC 302, de 2005, mas não a sua simples extinção.

Luiz Fernando Barcelos_SBAC

“Nós tínhamos um sistema em que o laboratório era regulado por uma norma forte, que é a RDC 302. Esse laboratório poderia ter seus postos de coleta que teriam que estar vinculados em apenas um laboratório. Esse laboratório também poderia mandar para um laboratório de apoio mediante contrato também regulado pela RDC 302, e os exames que eram feitos fora tinham de estar vinculados a um laboratório. Ou seja, havia uma segurança no processamento. E essa nova proposta abre completamente, desvincula o laboratório do local de coleta. E, diga-se de passagem, a coleta é onde existe 60% dos erros de laboratório. Ela desvincula a coleta ao laboratório e com isso traz uma fragilidade na segurança do paciente, na segurança sanitária e na garantia da qualidade”, enfatiza Barcellos.


As alterações impostas pela Consulta Pública 912

Consulta Pública 912, de 27 de agosto de 2020, intitulada “Requisitos Sanitários para funcionamento de laboratórios clínicos e postos de coleta laboratorial” tem como objetivo estabelecer os requisitos técnicos para a organização e a execução das atividades relacionadas aos Testes de Análises Clínicas (TAC) na prestação de Serviços de Apoio ao Diagnóstico e Terapêutico (SADT), alterando o disposto estabelecido pela RDC 302/2005.

Mudanças e dúvidas importantes que surgem com as Consultas:

Os Laboratório de Análises Clínicas passam a ter a denominação de Laboratório Clínico de Apoio (LCA).

Consultórios médicos, odontológicos, veterinários, estabelecimentos de saúde, UBS, posto de coleta e farmácias poderão se tornar SADT-TAC. Isto é, poderão realizar e liberar resultados dos Testes Laboratoriais (como testes rápidos).

Outra crítica é a falta de definição de quem seria o Responsável Técnico. Numa clínica odontológica, por exemplo, seria o dentista?

Haverá nas SADT-TAC o conhecimento e a expertise para todo o processo analítico dos resultados?

Se os SADT-TAC coletam, fica a dúvida: os LCA serão corresponsáveis?  

De acordo com Barcelos, a SBAC, conselhos e sociedades científicas já pediram uma reunião com a Anvisa para solicitarem que a consulta pública seja retirada.

Impacto no conceito de laboratório de análises clínicas

“Esse é um impacto [sobre o conceito do que é um laboratório de análises clínicas] grave. Na verdade, o conceito de laboratório de análises clínicas não é inventado por nós, é um conceito internacional. Nós temos uma ISO 15.189 que fala sobre o laboratório clínico. É uma instituição internacionalmente reconhecida como o local adequado para realizar exames. E, no momento que se faz uma proposta onde isso deixa de existir, na verdade o laboratório hoje pela proposta é só o de apoio, todo o restante é chamado de SADT-TAC, que são pontos de captação de exames”.

Cliente estará vulnerável

“O cliente é leigo, portanto, não podemos jogar o ônus ao cliente de saber onde o exame é bem feito ou não. O cliente tem todo o direito de, em qualquer lugar onde está colocado que se faz exame de laboratório, que esse local apresente um serviço de qualidade. Cabe a nós garantirmos que, em qualquer lugar que o cliente vá, esse exame seja bem feito. Nós não somos contra que um exame possa ser feito em uma farmácia. Mas a segurança para o paciente tem de ser garantida pela norma técnica, porque o cliente não tem condições de avaliar qual o melhor local, por ser leigo”.

Barcelos critica mudança imposta aos laboratórios

“ No nosso entendimento, o grande impacto negativo dessa proposta é que, em primeiro lugar, desrespeita os laboratórios. Os laboratórios são instituições reconhecidas internacionalmente como um local para a realização de exames, e o texto descaracteriza o laboratório como local para fazer exame com a criação do SADT-TAC, que parece mais uma jabuticaba brasileira. Em segundo lugar, desrespeita os profissionais, pois temos profissionais treinados, habilitados, com expertise para fazer análises clínicas, e essa proposta abre margem para que outros profissionais, é verdade que da área da saúde, mas que não estão familiarizados e nem tem expertise em laboratório, possam fazer também. Mas, principalmente, é um desrespeito para a sociedade, porque tínhamos com a RDC 302 uma resolução que amarrava perfeitamente bem todo o trabalho de análises clínicas em torno da segurança sanitária e da garantia da qualidade. Ou seja, nós tínhamos um sistema em que o laboratório era regulado por uma norma forte, que é a RDC 302. Esse laboratório poderia ter seus postos de coleta que teriam que estar vinculados em apenas um laboratório. Esse laboratório também poderia mandar para um laboratório de apoio mediante contrato também regulado pela RDC 302, e os que eram feitos fora tinham de estar vinculados a um laboratório. Ou seja, havia uma segurança no processamento. E essa nova proposta abre completamente, desvincula o laboratório do local de coleta, que, diga-se de passagem, a coleta é onde existe 60% dos erros de laboratório. Ela desvincula a coleta ao laboratório e com isso traz uma fragilidade na segurança do paciente, na segurança sanitária e na garantia da qualidade”, explica Barcelos.

Proposta: readequar a RDC 302

Segundo Barcelos os laboratórios estão se manifestando massivamente contra essa nova norma. “Pretendemos, para semana que vem, realizar uma reunião com a diretoria da Anvisa e tentar mostrar para eles que a proposta não atende aos interesses da sociedade. Nossa proposta é que essa consulta pública seja retirada, e que possamos sentar e discutir uma nova proposta.  A nossa proposta é pegar a RDC 302, que é uma norma muito boa, atualizar os tópicos em que estava desatualizada, mas não criar um outro conceito de atendimento”.

“Queremos convencer a diretoria da Anvisa de que esse documento é completamente absurdo e que deve ser retirado. Não adianta querer remendar esse documento, nós temos que retirar ele. E depois vamos discutir uma revisão da RDC 302”, finaliza o presidente da SBAC.

Entidades

O Conselho Regional de Farmácia de São Paulo também se posicionou contrário, em nota publicada no dia 17 de setembro, assinada pelo presidente da entidade, Marcos Machado Ferreira. “ Os farmacêuticos que atuam na área de análises clínicas, bem como os Conselhos Regionais e Federal de Farmácia, foram surpreendidos com a proposta da Anvisa de permitir que exames sejam realizados por profissionais que não têm sua formação voltada para atuação na área laboratorial e a permissão para coleta e realização de exames em ambientes não apropriados. Ao fazer essas propostas, a Anvisa banaliza os exames e expõem a população a riscos desnecessários. Realizar exames é um ato de extrema responsabilidade que requer conhecimentos, profissionais capacitados e treinados, ambiente apropriado, controle de qualidade, gerenciamento de riscos e responsabilidade na interpretação de exames e liberação de resultados. Realizar exames é um ato de extrema responsabilidade que requer conhecimentos, profissionais capacitados e treinados, ambiente apropriado, controle de qualidade, gerenciamento de riscos e responsabilidade na interpretação de exames e liberação de resultados. O Conselho Regional de Farmácia de São Paulo se posiciona contrário à Consulta Pública 912. Exame é coisa séria”, diz a nota.

Já a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed) destaca: “Somos a favor da saúde, da segurança do paciente e do diagnóstico preciso, feito por profissionais capacitados, em ambientes adequados e com gerenciamento de risco e responsabilidade na interpretação e análise crítica de resultados. Por isso, repudiamos as Consultas Públicas (CPs) 911 e 912 que, propostas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), permitem que exames sejam realizados por profissionais que não têm sua formação voltada para a atuação laboratorial, além da coleta e realização de exames em locais não apropriados”, em nota publicada no dia 18.

Para Cláudio Allgayer, presidente da Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Saúde do Rio Grande do Sul (FEHOSUL), entidade que abriga o Sindicato dos Laboratórios do RS (Sindilac-RS), o momento é totalmente inoportuno. Para ele, as consultas públicas poderiam ter sido conduzida em cooperação com as entidades do setor. “Acredito que a Anvisa poderia ter evitado esta celeuma, consultando as entidades. Estamos apoiando o tentando sensibilizar lideranças e técnicos envolvidos com o apoio da CNSaúde [Confederação Nacional de Saúde]. Acredito que conseguiremos sensibilizar a Agência e que o trabalho desempenhado pelos laboratórios não acabe por ser desprestigiado. É importante garantirmos a devida confiabilidade dos processos laboratoriais”, diz Cláudio Allgayer, que também é vice-presidente da CNSaúde.

Reunião com a Anvisa

Luiz Fernando Ferrari Neto, vice-presidente do SindHosp, diretor da FEHOESP e coordenador do Comitê de Laboratórios das entidades esteve em Brasília na semana passada para participar de reunião com o Almirante Antônio Barra Torres e com Romison Rodrigues Mota, respectivamente diretor-presidente e diretor da Anvisa. Wilson Shcolnik, atual diretor do SindHosp e FEHOESP também esteve presente à reunião representando, ainda, a SBPC/ML, Abramed e a CNSaúde.

O objetivo do encontro foi a entrega do manifesto setorial da área de laboratórios contra as Consultas Públicas 912 e 911, recentemente publicadas pela Agência. No documento entregue às autoridades da Anvisa, as entidades destacam que as consultas públicas foram propostas sem levar em consideração as colocações que já vêm sendo feitas nos últimos anos por todo o setor de laboratórios.  “A proposta desconsidera todos os protocolos de segurança, operacionais e as normas rígidas de funcionamento dos laboratórios clínicos ao permitir que exames sejam realizados em locais sem controle de qualidade e por profissionais não habilitados. Precisamos garantir a qualidade técnica e a segurança dos exames”, destaca Ferrari Neto.

De qualquer maneira, para Ferrari Neto, o encontro é histórico. “Essa reunião com a Anvisa, que nos recebeu para ouvir as alegações do setor, é um momento marcante de diálogo entre os laboratórios e governo, em grande parte, resultado do trabalho de líderes do setor”, afirma.

cp 911 912

Também participaram da reunião: representando a Anvisa Juvenal de Souza Brasil Neto, diretor-adjunto; Oswaldo Rodrigues Junior, assessor-chefe e Richardson Santos Araújo, assessor; o deputado federal Pedro Westphalen, com forte atuação no Congresso Nacional  em defesa da saúde privada; o deputado federal Dr. Luiz Antônio Teixeira Jr (Dr Luizinho); a deputada federal Carmen Zanotto; deputado federal Pedro Westphalen; Edgar Garcez Junior, do Conselho Federal de Biomedicina (CFBiomedicina); Lenira da Silva Costa, pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF); Gilcilene Chaer, da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC); Bruno Sobral, CNSaúde; Natasha Slhessarenko Freife Barreto, do Conselho Federal de Medicina (CFM); Rony Marques Castilho, da Associação Brasileira de Biomedicina (ABBM) e Guilherme Ferreira Oliveira, da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML).

Adiamento das consultas 

Após os esclarecimentos e apontamentos que constam do manifesto –  que apresenta detalhadamente todas as alegações, consequências e riscos que as propostas das consultas trazem se não forem adequadas à realidade e exigências do setor -, aguarda-se o adiamento das consultas. A decisão de anular deve ser deliberada na próxima reunião de Diretoria Colegiada da Agência, mas foi sugerida uma contribuição resumida às consultas públicas informando o “impacto negativo e inviabilidade de contribuir detalhadamente pela inadequação do texto proposto”.

Com informações FEHOESP, CFF, CFF/SP, Abramed. Entrevistas Fehosul e SBAC por Setor Saúde.



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