Estatísticas e Análises | 10 de março de 2024

Rolagem infinita afeta noção de tempo e pode causar dependência

Usados com moderação, aplicativos e redes sociais podem ser excelentes ferramentas, mas é preciso lembrar que se tratam de negócios que lucram ao manter pessoas conectadas.
Rolagem infinita afeta noção de tempo e pode causar dependência

Você vai dar uma olhadinha nas redes sociais e quando percebe já se passaram horas, entre textos, fotos ou vídeos. Ou decidiu assistir a apenas um episódio e acabou maratonando a série inteira, sem precisar apertar nenhum botão. Esses são efeitos da rolagem infinita: seja na linha do tempo das redes ou em aplicativos de streaming – que seguem tocando músicas e vídeos sem que a gente faça qualquer ação proativa. Tudo isso nos deixa mais tempo em frente às telas, e especialistas alertam que essa imersão profunda pode trazer prejuízos, individuais e coletivos, e até causar dependência.


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“A tecnologia está em nosso cotidiano, o desafio é saber dosar. Longe de ser vilã, ela nos traz muitas coisas boas, auxilia na comunicação, aproximação, informação, entretenimento. Mas é muito diferente da forma que consumimos conteúdo no século passado – ou mesmo na década passada! Hoje, temos acesso a todo tipo de informação a qualquer momento, e isso, da mesma forma que pode ampliar nossos horizontes, também pode nos limitar. É preciso estabelecer uma relação saudável”, aponta a especialista em saúde pública Aline Soares, professora de Psicologia da UniRitter. Ao mesmo tempo, para as empresas que administram essas plataformas nosso tempo online é oportunidade de lucro.

Modelo de negócio

Quanto mais tempo ficamos conectados, mais chances as plataformas têm de monetizar nosso consumo dessas tecnologias. “Consumir é um ideal de vida e é preciso fazer com que as pessoas comprem. E nos deixamos levar facilmente pois estamos inseridos nessa sociedade de consumo e espetáculo, da busca de destaque e visibilidade para se sentir parte”, avalia a psicóloga. Nos Estados Unidos, há dezenas de processos contra a Meta (dona de Instagram e Facebook) por explorar tecnologias para atrair jovens em detrimento dos efeitos na saúde. Porém, nada indica que vá haver uma mudança que parta das plataformas, afinal este é seu modelo de negócio.

“Tudo é baseado em análise de dados, essas empresas conhecem bem os usuários: o que assistem, ouvem, lêem. Esses dados são recebidos de diversas formas pelos algoritmos, e a gente aceita isso quando abre uma conta – muitas vezes sem ler os termos de consentimento. Assim, formam-se os sistemas de recomendação: se eu sei o que você gosta e consome, vou entregar mais disso. E vai ficando tão eficaz que, às vezes, sem se dar conta, a gente acaba até vendo anúncio sem pular, porque ele nos interessa, faz sentido. Isso é feito para que a gente consuma marketing como conteúdo”, explica Vinícius Cassol, professor de Tecnologias da Informação da UniRitter.


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Noção do tempo

Porém, há mais consequências do tempo que passamos online para além de sermos submetidos constantemente a anúncios publicitários. No aspecto individual, elas vão da produtividade no dia a dia a questões de saúde mental. Na esfera coletiva, afetam as formas como nos relacionamos em sociedade e a formação cognitiva de crianças que já crescem em meio a essas tecnologias. “O modo como atinge a noção do tempo é verificável em nossa produtividade. Às vezes vamos dar só uma olhadinha numa rede social e quando vimos já passou uma hora, duas horas… Tempo que aproveitamos de forma palpável se conseguimos passar um dia longe do celular, resolvendo coisas fora das telas”, exemplifica Aline.

Citando o filósofo Zygmunt Bauman, ela fala sobre os desafios educacionais e pedagógicos na “modernidade líquida”, em que a solidez das coisas e das relações duradouras são vistas como ameaças. “Estamos imersos nas redes sociais onde é tudo muito instantâneo, e a rolagem tem esse aspecto atemporal, em que diversos conteúdos se resolvem em 30 segundos, enquanto a vida não se resolve dessa forma, tem outro tempo. Nós precisamos de planejamento, de pensar sobre determinado assunto. Por isso ficamos vulneráveis ao modo como os algoritmos trabalham para captar nossa atenção e nos colocar em bolhas do mundo ideal”, detalha.

A sensação de que estamos sempre atrasados para alguma novidade pode ser gatilho de ansiedade e comparável com o vício em drogas. “Essa incapacidade de parar de rolar a tela é uma dependência. A comparação com drogas é válida, pois não só explora como potencializa fragilidades. É uma eterna sensação de que a grama do vizinho é mais verde, e agora ela é cada vez mais verde mesmo, pois tem filtros, não é real”, pondera a docente. Vinícius faz coro: “Teoricamente, é um recurso para facilitar nossas vidas e nos sentirmos bem. Mas é prazer momentâneo. Quando você está prestes a largar a tela, vem algo novo, que te retém. É como uma droga mesmo. Estamos sempre recebendo coisas que nos chamam atenção, os algoritmos estão mais eficientes nesse sentido.”


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Ideais irreais

A busca por modelos ideais, seja de corpo, relacionamento ou organização da casa, também pode gerar muita ansiedade e frustração. “Enquanto o Brasil é um dos países mais ativos nas redes sociais, também lideramos os casos de ansiedade. Isso não se dá por acaso. O aumento de quadros de depressão e déficit de atenção também está muito relacionado a essa imersão nas telas, que foi agravada na pandemia. Durante o isolamento, as tecnologias nos permitiram acesso a um mundo paralelo, para dar conta daquele momento, o que foi muito bom. Mas agora que podemos nos voltar ao mundo lá fora, seguimos presos às telas”, aponta Aline.

Quanto mais jovem, maior a vulnerabilidade. “A infância é uma fase para brincar em atividades que desenvolvam trocas, relações sociais, capacidades de resolver problemas e lidar com frustrações. Crianças com acesso às telas estão sendo privadas disso, o que pode levar a danos cognitivos. Nesse sentido, temos uma consequência coletiva devastadora, pois é uma geração que vai crescer sem esses recursos, sem conseguir lidar com os erros. Já na adolescência passamos por muitas mudanças, internas e externas. Como um adolecente vai se sentir quando suas referências aparentam vidas perfeitas, peles sem espinha?”, questiona a docente. O sentimento de pertencimento fica prejudicado e gera muito estresse.

Regulamentação

A falta de recursos para lidar com frustração pode levar ao individualismo e até à agressividade. E aí está outro perigo das tecnologias: bolhas de pensamentos polarizados, disseminação de fake news e discursos de ódio. “As redes não têm filtros de segurança eficazes, e permitem acesso à desinformação e a opiniões extremistas que são reproduzidas como verdades”, critica a psicóloga. Recentemente, o Parlamento europeu chegou a um acordo para regular o uso da inteligência artificial, o que passa também pela forma como somos monitorados nas telas e que tipo de conteúdo consumimos.

Vinícius entende que há necessidade de regulamentação, e que ela precisa ser definida por países. “Assim como os processos contra a Meta nos EUA, há movimentos pedindo que se pare de avançar nesse tipo de tecnologia de rolagem infinita até que haja a regulamentação. Isso é muito cultural. As empresas são globais, mas cada cultura recebe a informação de uma forma diferente, então será necessário soluções diferentes”, aponta o professor de TI.

Há tanta vida lá fora

Enquanto não há uma regulação no Brasil que ajude a conter os gatilhos viciantes das plataformas, é preciso buscar a dose ideal individualmente ou em família. Tanto Aline quanto Vinícius percebem a necessidade de uma reconexão consigo mesmo. “Precisamos estar bem conosco. Esse é o poder do engajamento, a tecnologia traz recompensas que a vida falha em oferecer. Quem não está satisfeito com a vida, fica preso”, pondera o professor. Ele sugere inserir a tecnologia em momentos pontuais da rotina, para limitar e não perder a percepção do tempo conectado.

“Com o imediatismo da vida online, deixamos de valorizar nossa ancestralidade, histórias de vida, relações com os outros e a natureza. Precisamos descobrir o que a gente gosta fora das redes. Aí, podemos, inclusive, utilizá-las com propósito, e não apenas rolando a tela. Se gostar de caminhar, de mexer com plantas, de meditar, é possível encontrar muito conteúdo sobre tudo isso. Assim, usar a tecnologia para buscar informações sobre o que se gosta e não como anestésico. É preciso olhar para fora. E se for muito difícil, se gerar sofrimento, é válido buscar terapia, para entender as causas dessa dificuldade e dar contornos para essa ansiedade”, recomenda a psicóloga.

 



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