Estatísticas e Análises | 30 de agosto de 2016

A preparação mental de atletas de alto rendimento

Bons resultados no esporte requerem mais do que preparação física e técnica
A preparação mental de atletas de alto rendimento

Como se viu ao longo da Olimpíada no Rio de Janeiro, uma medalha de ouro é fruto não só do esforço e treinamento físico, mas também do apoio psicológico. A judoca Rafaela Silva, campeã da categoria até 57 kg, afirmou que foi a partir do suporte psicológico que ela conseguiu superar a difícil experiência da eliminação nos jogos de Londres (2012), quando foi insultada nas redes sociais. Entre as críticas, a atleta ouviu que “era uma vergonha para sua família” e “que lugar de macaco era na jaula”. As ofensas quase a levaram a abandonar o judô. “Naquele momento, pensei em desistir do meu esporte, da minha vida e de tudo que tanto batalhei”, desabafou após conquistar a medalha de ouro no Rio de Janeiro.

Situação semelhante viveu o mito das piscinas, Michael Phelps, que se consagrou como o maior atleta olímpico da história. No Brasil, conquistou mais seis medalhas (cinco de ouro e uma de prata) e chegou à incrível marca de 28 no total (23 de ouro, três de prata e duas de bronze). Mas longe das competições e recordes, nos últimos dois anos Michael Phelps enfrentou uma profunda depressão; para se recuperar, colocou a Olimpíada do Rio como meta. Ele encerrou a carreira em alta, mas até chegar a esse momento, enfrentou momentos difíceis. Após os jogos de Londres, sofreu depressão e foi internado em um centro de reabilitação após ser flagrado pela segunda vez dirigindo embriagado. A ajuda da namorada, Nicole Johnson, foi fundamental para sua retomada e a recuperação foi concluída com o nascimento do filho, em maio do corrente ano.

“A prevalência de transtornos mentais entre atletas ainda é pouco conhecida, mas alguns estudos trazem informações fundamentadas. Por exemplo, um estudo australiano conduzido com 224 atletas de elite identificou prevalência similar à observada na comunidade, ou seja, 46,4% dos atletas entrevistados experimentaram sintomas de pelo menos um dos problemas avaliados (depressão, transtorno alimentar, sofrimento psíquico, ansiedade social, transtorno de ansiedade e transtorno de pânico), sendo a depressão a mais frequente (27,2%). O trabalho foi publicado em 2015 no Journal of Science and Medicine in Sport”, revela o portal Medscape.

Outro levantamento relacionado ao tema foi realizado em 2013 pela FIFPro (Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol). “Dos 607 jogadores em atividade que foram entrevistados, 38% já sofreram de depressão ou ansiedade. Entre ex-jogadores de futebol, a taxa foi um pouco menor: 35% (amostra de 219 indivíduos). A análise, que foi feita com base em informações reunidas por sindicatos membros da Bélgica, Chile, Finlândia, França, Japão, Noruega, Paraguai, Peru, Espanha, Suécia e Suíça, mostrou que atletas em atividade que sofreram três ou mais lesões graves durante sua carreira tinham de duas a quatro vezes mais chances de relatar problemas de saúde mental do que aqueles que não sofreram lesões graves”.

Coaching esportivo

Para superar os traumas e se consagrar na Olimpíada do Rio, Rafaela Silva teve o apoio da psicóloga Nell Salgado, membro da Sociedade Brasileira de Coaching (SBC) e profissional que se dedica há seis anos ao coaching esportivo. Ela revelou ao portal Medscape que “o coaching trabalha com reprogramação mental. Não importa, portanto, a emoção que cada um tem ou as experiências positivas e negativas que vivenciou ao longo da vida. Nós damos ferramentas para que o atleta possa aprender a lidar com toda essa carga emocional, ele aprende a usar as emoções como combustível para os resultados. Todas as pessoas têm uma história triste, mas só é campeão quem consegue usar fatores negativos a seu favor e ser feliz”.

Através da programação neurolinguística (PNL), Nell Salgado precisou fazer a judoca deixar de acreditar nas críticas, e depois usou a estratégia da visualização. “Vamos conduzindo o atleta para projetar uma situação do futuro. Narramos uma situação; o atleta fecha os olhos e colocamos música. No caso da Rafaela, pedi para que ela se visse diante da televisão assistindo a seus amigos entrando para competir nos Jogos Olímpicos de 2016. Isso para ela perceber qual seria sua reação se não fosse às Olimpíadas e ficasse assistindo de casa. Queria mostrá-la qual seria o tamanho dessa dor e se ela conseguiria conviver com isso”, contou.

Para alguns atletas, uma boa estratégia é aumentar a pressão, enquanto outros se beneficiam de um suporte que vise minimizá-la. “Para decidir qual o melhor caminho, fazemos uma anamnese (como uma entrevista que tem a intenção de ser um ponto inicial no diagnóstico de uma doença ou patologia. Busca relembrar todos os fatos que se relacionam com o problema da pessoa), a fim de entender o tipo de personalidade do atleta”, comentou Nell Salgado.

No caso de Rafaela, que responde bem à pressão, a especialista reforçou essa carga, lembrando-a que não era a favorita, que precisava se empenhar. O resultado foi a medalha de ouro. “É importante ajudar o atleta a lembrar qual a sua essência e que esta não muda, diferente do jornal, cuja notícia de hoje estará no lixo amanhã. O atleta precisa ter calma nesse momento”.

Além da abordagem personalizada, também é possível trabalhar a saúde mental dos atletas em grupo. A coach dá palestras no Instituto Reação, onde atua como voluntária. Ela trabalha também com crianças de alto rendimento. Sobre a atenção na infância, Nell Salgado afirmou que as crianças não têm vícios ou crenças que os adultos já desenvolveram. “Por exemplo, um atleta adulto que luta com um oponente canhoto e perde, começa a acreditar que luta mal contra canhotos; ou um atleta de salto com vara, se não tem um desempenho muito bom em uma competição que ocorre em um dia com vento, passa a achar que não compete bem quando venta. Isso tudo são vícios, crenças que os adultos desenvolvem, é uma coisa natural, mas as crianças não têm”, esclarece.

Psiquiatria esportiva

O jogador de futebol Éder, que na Eurocopa 2016 (realizada em julho, na França) fez o gol do inédito título de Portugal, dedicou o triunfo à sua “mentora de alta performance”, Suzana Torres, especialista em desenvolvimento pessoal na área desportiva. Segundo ela, definir objetivos e ter a capacidade de administrar momentos de adversidades, frustrações, desmotivação e ausência de resultados, são fatores tão importantes quanto as qualidades técnicas ou táticas.

Já o psiquiatra Marcelo Nobre Migon, membro da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE), atende atletas de alto rendimento em caráter profissional ou amador. Segundo ele, a preparação do atleta de alto rendimento envolve três vertentes: técnica/tática; física; e mental.

“Em cada uma dessas vertentes há uma série de profissionais envolvidos. Na preparação mental, estão: o médico psiquiatra, o psicólogo esportivo, assistentes sociais, dentre outros profissionais da saúde mental esportiva. Cuidados em saúde mental devem sempre contar com um médico psiquiatra, que é hierarquicamente o profissional com maior gama de conhecimentos acerca da alma dos atletas. O psiquiatra pode então ajudar no diagnóstico precoce de patologias que interfiram na performance, tais como transtornos de ansiedade, alimentares, problemas relacionados ao sono, bem como tratar e, principalmente, contribuir com a prevenção dos transtornos mentais em atletas, assim como direcionar um ‘fortalecimento mental’, como coach de atletas”, explicou ao Medscape.

Marcelo Nobre Migon diz que um dos principais sinais de que algo não vai bem com o esportista é a discrepância entre o rendimento nos treinamentos e nas competições. Ele destaca que é preciso estar atento a sinais como alterações de sono, de apetite, irritabilidade, isolamento social, alcoolismo, entre outros. “Todas as etapas de nossas vidas nos ensinam, tanto as vitórias, mas principalmente as derrotas”, explica o Dr. Migon. “Por vezes, vitórias atrapalham mais do que ajudam, enquanto certas derrotas são marcos em mudanças nas vidas de muitos atletas”. Ele salienta que “o que importa para meus atletas é o processo, como chegam aos seus resultados em suas competições, se estão felizes com suas profissões, enfim, somos médicos das almas”.

A influência da torcida

A torcida é outro ponto que pode interferir no desempenho, como foi visto na Olimpíada, no caso do medalhista de ouro, Thiago Braz. “Vimos um exemplo prático positivo disto no salto com vara, com o brasileiro Thiago Braz, mas ela também interfere negativamente. Por vezes, o torcedor não compreende muito daquele esporte e exige de sua equipe mais do que ela pode proporcionar, isso sem dúvida conduz a uma queda de rendimento. Além da alma de cada atleta, há uma alma na competição, devemos entender que esta é resultante da união das equipes envolvidas mais os torcedores, mais os árbitros, ou seja, é a soma de todas as almas, logo, há sim interferência da torcida no rendimento dos atletas e equipes”, considerou o psiquiatra.

As reações extremas, como ofensas homofóbicas e racistas, devem compreendidas e administradas, diz o especialista. “É preciso um profissional habilitado em cada instituição de esporte, em cada modalidade, observando onde estão os comportamentos desviados. Se for na torcida, esta deverá ser foco de atenção. Algo tem que ser feito, não podemos deixar como está para ver como ficará. Precisa mudar”, ressaltou.

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