Mundo | 29 de dezembro de 2016

Novidades na pesquisa do câncer em cães também podem ajudar os humanos

Imunoterapia usada em caninos começa a ser testada em pessoas
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Nos EUA, tem crescido o interesse de pesquisadores em um campo chamado “oncologia comparada” (comparative oncology). Ele se concentra em encontrar novas formas de tratar o câncer em animais de estimação, principalmente cães, em um esforço para desenvolver tratamentos inovadores para animais e humanos.

Como mostra uma reportagem do jornal Washington Post, o crescente interesse em cães reflete a frustração dos pesquisadores com a abordagem padrão para o desenvolvimento de tratamentos contra o câncer: testar em animais de laboratório, especialmente ratos. Os camundongos normalmente não têm câncer (deve ser induzido) e os sistemas imunes em muitas cepas foram alterados. Isso os torna cobaias especialmente pobres para imunoterapia, um campo de rápido crescimento da medicina que dirige o próprio sistema imunológico do paciente no combate ao câncer.

Os cães, por outro lado, têm câncer naturalmente, assim como as pessoas, e têm seus sistemas imunológicos intactos. “Geneticamente, você é muito mais parecido com o seu cão do que um rato em uma gaiola no laboratório”, comparou Nicola Mason, uma veterinária e imunologista que supervisiona a vacinação e vários outros ensaios caninos no Hospital Veterinário Ryan, da Universidade da Pensilvânia (EUA). “Onde os cães realmente se destacam é na maneira de gerar tumores e reagir aos tratamentos, o que é muito parecido com as pessoas”, salientou.

O jornal conta a história de Flyer, uma golden retriever com tumor ósseo. Com 8 anos de idade, a cadela foi diagnosticada com osteossarcoma, um câncer doloroso, agressivo, que geralmente atinge raças de grande porte. No hospital veterinário na Pensilvânia, ela recebeu o tratamento padrão: uma de suas pernas foi amputada, e ela passou por quimioterapia. “A maioria dos cães morrem em cerca de um ano quando a doença reaparece nos pulmões. Os veterinários recomendaram uma vacina experimental destinada a impedir ou atrasar o retorno do câncer”. Flyer recebeu três doses intravenosas, como parte de um ensaio clínico e agora retorna periodicamente para raios-X”.

A vacina que a cadela recebeu em seu tratamento já está começando a ser testada em humanos, depois ter demonstrado resultados impressionantes em um estudo anterior com cães feito pelo hospital veterinário da Pensilvânia. Como revelou o Washington Post, a ideia é desenvolver um medicamento para crianças e adolescentes, que são mais propensas que adultos de desenvolver osteossarcoma.

As versões canina e humana desse câncer envolvem muitos dos mesmos genes e são biologicamente similares. “O que nós aprendemos em uma espécie pode ser aplicado para a outra”, disse Robert Petit, diretor científico da Advaxis, a empresa que está testando a droga em pessoas.

 Parceria entre médicos e veterinários

Nos EUA, faculdades médicas e veterinárias estão atuando em parceria para encontrar novos tratamentos para doenças malignas, do linfoma e melanoma ao câncer cerebral e da bexiga. “O National Cancer Institute está supervisionando ensaios caninos em quase duas dezenas de universidades veterinárias, e instituições focadas na saúde animal estão intensificando seu apoio”.

A imunoterapia é a grande vertente da medicina veterinária, assim como em tratamentos de câncer humano. Os pesquisadores esperam que estudos em cães possa ajudar a explicar por que algumas pessoas se beneficiam da abordagem e outros não. Amy LeBlanc, diretora do Programa de Oncologia Comparada do National Cancer Institute, ressaltou que os dados dos animais podem dar às empresas farmacêuticas “as garantias necessárias” para avançar com um tratamento promissor.

Nem todos aceitam a idéia de que animais de estimação serão tão úteis para testar tratamentos em pessoas. Muitas experiências estão nas fases iniciais. Laurence Baker, oncologista da Universidade de Michigan que é especializado em câncer ósseo, disse que enquanto ele é “agnóstico” sobre o uso de animais para pesquisa, “nesta área, como em muitas áreas de pesquisa, há muito mais alarde do que sucesso”.

Os proponentes da oncologia comparativa dizem que as semelhanças de alguns tipos de câncer sugerem benefícios para ambas as espécies. O câncer é a maior ameaça à saúde de cães, matando metade dos que chegam aos 10 anos ou mais. “Eles são pacientes, não animais de laboratório”, disse Nicola Mason.

A maioria dos medicamentos contra o câncer para os cães foram inicialmente desenvolvidos para seres humanos. A reportagem cita Harley, um boxer de 4 anos com leucemia agressiva. “Recentemente, ele chegou na Universidade da Pensilvânia para um tratamento chamado de terapia de células T, que tem mostrado alguns resultados promissores em ensaios para as pessoas com cânceres do sangue”.

“O procedimento de imunoterapia para cães é semelhante ao humano: as células T, um componente chave do sistema imunológico, são extraídos, geneticamente modificados em laboratório para reforçar suas capacidades de combater o tumor, aumentam em número e, em seguida, são reinfundidas”. Dra. Nicola Mason começou a trabalhar no tratamento para cães quando fazia pós-doutorado no laboratório de Carl June, um proeminente pesquisador na Escola de Medicina de Perelman, na Pensilvânia, e pioneiro em células T. 

Os proprietários de cães que participam dos ensaios obtêm a maior parte do atendimento gratuito, incluindo tratamentos e consultas de acompanhamento. Mas pode haver despesas relacionadas. “No ensaio de osteossarcoma, os proprietários são obrigados a pagar pela amputação e pela quimioterapia”. 

Se estes tratamentos caninos fossem vendidos fora ensaios clínicos, poderiam ter preços elevados. “A versão humana de terapia de células T, por exemplo, que ainda está em fase de ensaios clínicos, pode custar centenas de milhares de dólares, caso chegue ao mercado. Os pesquisadores esperam que mais progresso vá reduzir o custo para as pessoas e cães igualmente.

Décadas de pesquisa

A noção de usar caninos como um modelo para tumores humanos surgiu décadas atrás. “Quando o oncologista veterinário Stephen Withrow foi estagiário no Animal Medical Center, em Nova York na década de 1970, ele participou de rounds na Memorial Sloan Kettering Cancer Center e percebeu que a medicinas animal e humana poderiam ajudar umas às outras. “Isso abriu meus olhos”, disse ele. Crianças com osteossarcoma foram beneficiadas com essa visão.

Stephen Withrow, que ingressou na fundação Flint Animal Cancer Center, na Universidade do Colorado, desenvolveu uma técnica cirúrgica que permitiu que cães com câncer ósseo evitassem a amputação. Ele também trabalhou em colaboração com um cirurgião ortopédico para adaptar a técnica de preservação do membro para crianças. “Na década de 1990, quando uma menina de Colorado de 11 anos de idade chamada Emily Brown foi diagnosticada com um caso especialmente complicada de osteossarcoma, seus médicos perguntaram a Withrow se havia novos tratamentos caninos. Ele sugeriu uma terapia experimental que Brown – hoje com 30 anos – considera ter salvo sua vida.

O sequenciamento do genoma canino em 2005 aumentou o interesse em estudos comparativos. “Se o genoma humano fosse um baralho de cartas e você embaralhasse, poderia acabar tendo um coelho – embaralhe-o novamente e você acaba tendo cães”, disse o geneticista Matthew Breen, cujo laboratório na faculdade de veterinária da Universidade da Carolina do Norte esteve envolvido no projeto de sequenciamento.

Marie Cary, uma dona de uma golden retriever (Gracie) procurou a instituição de Breen alguns anos atrás, quando a sua cadela desenvolveu um tumor na mandíbula superior. Após o câncer não responder à quimioterapia, os oncologistas veterinários recomendaram um tratamento experimental, no qual partículas pequenas foram injetadas dentro do tumor com um composto sensível à luz chamado psoraleno. Exames de raios-X, em seguida, foram utilizados para direcionar as partículas, que responderam à emissão de luz ultravioleta que ativou o composto e interferiu no DNA das células tumorais, gerando uma resposta imune. Depois de algumas sessões, o tumor desapareceu. Gracie tem, atualmente, 10 anos. A faculdade está trabalhando com a Cancer Duke Institute e espera levar essa terapia para ensaios com humanos.

Alguns estudos de oncologia comparativa usam gatos para cânceres malignos como os orais e de mama, que têm semelhanças com as versões humanas. Mas os gatos são utilizados com menor frequência em estudos do que os cães, porque, segundo os investigadores, pouco se sabe sobre seus tumores e os felinos tendem a ficar mais estressados interagindo com pessoas.

O osteossarcoma é diagnosticado em cerca de 10 mil cães por ano nos EUA, e pesquisadores suspeitam que a maioria morre, porque a doença acaba se espalhando para os pulmões. Cerca de 800 norte-americanos também são diagnosticados anualmente, muitos deles crianças e adultos jovens. Quase três quartos são tratados com sucesso com quimioterapia, a última esperança para casos de doença avançada.

No Hospital Veterinário da Universidade da Pensilvânia, o ensaio da vacina a qual a cadela Flyer participou, nasceu de uma colaboração entre Nicola Mason e Yvonne Paterson, uma microbiologista na escola de medicina da universidade que sobreviveu a um câncer de mama. A vacina, que Peterson desenvolveu, usa bactérias (Listeria) geneticamente modificadas para atingir cânceres que são positivas para uma proteína encontrada no osteossarcoma, bem como em tumores da mama, gástrico e outros. As bactérias, enfraquecidas de modo a não causar doença, são concebidas para estimular o sistema imune para reconhecer e eliminar as células cancerígenas remanescentes após a quimioterapia.

Nicola Mason realizou a primeira investigação em 2012 com 18 cães. Tudo tem o tratamento padrão – amputação seguida por quimioterapia -, e em seguida três doses da vacina. O primeiro participante foi Sasha, uma buldogue. Ela sobreviveu 738 dias, em comparação com uma média de 423 dias para cães que tinham sido tratados no passado só com amputação e quimioterapia. “Eu estava um pouco preocupada com os possíveis efeitos colaterais, então coloquei ela na UTI e fiquei ao lado dela por três dias”, disse Mason. “Mas foi um anticlímax. A cadela foi ótima”. Muitos cães tiveram melhores resultados que Sasha, com sobrevida média de 956 dias. A vacina vai agora ser testada em um ensaio envolvendo dezenas de cães de todo o país.

Entretanto, a empresa Advaxis obteve o sinal verde dos reguladores federais (FDA) para iniciar uma investigação humana em estágio inicial com adultos. Dados caninos da especialista foram especialmente importantes para dissipar as preocupações sobre possíveis danos ao coração. A empresa quer lançar um estudo em 2017 para as crianças, com o objetivo de melhorar a resposta ao tratamento e reduzir recaídas.

“Poucas semanas depois de Flyer receber alta, Harley chegou para a terapia de células T para a leucemia. Mason tinha tratado quatro cães com linfoma, mas os três primeiros apresentavam doença avançada e morreram rapidamente. O quarto sobreviveu por sete meses”. Para tentar obter melhores resultados, a equipe de Mason trocou a maneira de modificar as células T, tornando os seus procedimentos mais em linha com as técnicas utilizadas para as pessoas.

As células T de Harley haviam sido retiradas durante uma consulta anterior, geneticamente alteradas e depois multiplicadas. Agora era hora para a infusão de 20 minutos. A dona, Erika Murphy, uma professora e mãe de um filho pequeno, chorou enquanto falava sobre a doença do cão à reportagem do Washington Post. “Ele é o nosso primeiro menino”, disse ela. Mason sentou-se com o cão em um cobertor xadrez no chão de uma sala de tratamento.

Outra veterinária da instituição, Martha MaloneyHuss, administrou as células T alterados através de um cateter intravenoso. “Harley ofegava fortemente, mas estava calma, observando um collie e outros cães que passeavam ao redor”. Na semana seguinte, o cão estava de volta para os exames. “Ele parece ótimo”, disse Mason, mas os sinais eram mistos. “O câncer está voltando, mas também estamos vendo a expansão das células T começando. Será que eles vão ser capazes de começar a combater o câncer? Estamos todos em suspense para ver”, concluiu a reportagem.

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