Estatísticas e Análises | 5 de março de 2021

Especialista analisa o momento atual da pandemia e o aumento da presença da variante P.1

Segundo Mellanie Fontes-Dutra “estamos vendo um grande paredão de crescimento de casos sem perspectiva de quando isso vai parar”
Especialista analisa o momento atual da pandemia e o aumento da presença da variante P.1

O Estado do Rio Grande do Sul vive o seu pior momento desde o início da pandemia. Na quinta-feira (4), 188 mortes foram divulgadas em um único dia, o recorde até então. Na sexta-feira (5), a taxa de ocupação geral dos hospitais (SUS + Privados) apresenta 101.5% de seus leitos de UTI ocupados, muitas instituições estão com índices acima de 100%. Um dos temores é que a variante P.1 tenha relação direta com o aumento de casos e óbitos.

A variante do Sars-CoV-2 chamada de P.1 foi identificada em meados de novembro de 2020, em Manaus e, nos meses seguintes, a cidade sofreu grande aumento de casos e internações por Covid-19. No Rio Grande do Sul, um estudo realizado pelo Laboratório de Pesquisa em Resistência Bacteriana (Labresis) do Centro de Pesquisa Experimental do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) identificou 21 casos positivos de pessoas residentes em Porto Alegre para a variante P.1 em circulação. A transmissão, segundo o estudo, é comunitária. A instituição comunicou os achados para a Vigilância em Saúde do Estado e de Porto Alegre – o que deu origem a um Alerta Epidemiológico publicado na terça-feira (2).

A variante P.1 apresenta mutações, algumas das quais ocorrendo nos genes que codificam a espícula, a estrutura que fica na superfície do vírus e permite que ele invada as células do nosso corpo. Outras variantes recentemente identificadas são a B.1.1.7, identificada no Reino Unido, e a B.1.351, identificada na África do Sul.

Para abordar o assunto, o Setor Saúde conversou com Mellanie Fontes-Dutra, biomédica e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Rede de Análises COVID-19. Ela enfatiza a importância da adesão ao distanciamento social, pois permite que a circulação da variante possa cair, o que seria fundamental para auxiliar o controle do aumento de casos e internações.

A biomédica também analisou como a variante poderá impactar a eficácia das vacinas e explicou o que muda nos cuidados individuais em relação à nova variante. Ela também avaliou o momento atual da pandemia, demonstrando grande preocupação com o aumento de casos e internações registrados. 

A variante P.1: como surgiu e o que possibilitou a circulação da variante

“De acordo com os últimos estudos, a variante P.1 é descendente da B.1.1.28 (ou 28-AM-II), que já circulava no início da pandemia no Brasil. Parece que surgiu no final de novembro do ano passado, na cidade de Manaus. Após o surgimento, ela teve um amplo espalhamento na região, num período que coincidiu com aumento do número de casos e internações, em um momento pós Natal, em que algumas medidas restritivas afrouxaram e estávamos vendo a população se aglomerando e não aderindo às medidas de enfrentamento. Então, é possível que a P.1 tenha encontrado um cenário favorável de transmissão nessa região, somado ao fato das próprias mutações que ela apresenta que pode facilitar a transmissão, pois ela é considerada uma variante com maior poder de transmissão em relação a outras. Então, a multifatorialidade desse cenário converge para o que aconteceu em Manaus, e que pode ser repetido em outras cidades e estados brasileiros”.

Principais características da variante

“A P.1 tem um conjunto de mutações. Dentre essas mutações, algumas acontecem na região da proteína spike. Dentro dessas que acontecem na proteína spike, duas chamam a atenção. Uma delas é a troca de aminoácidos, que é a N501Y, e essa mutação também está presente na variante emergente do Reino Unido, a B.1.1.7, e essa variante do Reino Unido já está bem associada com o aumento de transmissão. Então, é possível que esse aumento de transmissão da P.1 também seja por essa mutação compartilhada, mas não temos como saber, pode ser também por todo o seu conjunto de mutações. A outra mutação importante que a P.1 apresenta é a outra troca de aminoácidos, que é a E484K, também identificada na variante identificada na África do Sul, a B.1.351. Na África do Sul, os estudos observaram que a variante pode estar relacionada ao escape da resposta imunológica, porque, ao avaliar uma população do país que já tinha sido infectada pela cepa que era dominante, quando foi observado se essas defesas serviam para a B.1.351, viram que a variante escapava dessa proteção, e boa parte da população estava suscetível à nova variante. Então, aí começou a levantar o sinal de que ela poderia ter esse escape. Estamos observando se a P.1 também teria capacidade de escapar da resposta imunológica”.

Mellanie aponta que é importante que seja feita a vigilância genômica, e sobretudo testar mais e entender o quanto essa variante está presente nas populações para que tenhamos uma resposta mais assertiva sobre ela.

P.1 e as vacinas

A biomédica ressalta que, apesar de alguns resultados preliminares apontarem que as variantes possam diminuir a proteção de algumas vacinas, isso não significa que as vacinas perderão a eficácia.

“Os primeiros estudos sobre a eficácia das vacinas com a variante P.1 estão começando a ser lançados agora. Estamos vendo que ela pode afetar as vacinas, podendo diminuir a proteção, o que não quer dizer que as vacinas não funcionem, mas ela poderá ter uma diminuição da ação neutralizante, talvez da eficácia. Com o conjunto de dados atuais, ainda não é possível ter conclusões. É importante ressaltar que as vacinas têm um potencial imenso de abranger essas variantes mesmo que ocorra um pouco desse escape, porque a resposta imune não é só de anticorpos, há as células T que são menos suscetíveis a esse escape imunológico das variantes, por exemplo”, explica.

Mellanie ressalta que as vacinas ainda não apresentam estudos conclusivos que mostrem o impacto da P.1 sobre sua eficácia, mas destaca que, no Brasil, testes da vacina da farmacêutica belga Janssen-Cilag, que pertence à gigante Johnson&Johnson, foram realizados na população brasileira em um momento em que a P.1 já estava circulando no país, o que poderá auxiliar em breve com descobertas sobre a eficácia.

Mais transmissível, mais letal e a causa do crescimento de casos e internações?

A biomédica aponta que dados da literatura sugerem que a variante P.1 possa ser mais transmissível e que pode estar associada a um aumento da carga viral em pessoas infectadas por ela. No entanto, o aumento exponencial de casos e o agravamento das internações que estão sendo observados no país tem causas multifatoriais, não sendo explicado apenas pela variante. Ela aponta que o comportamento das pessoas na não adesão às medidas de enfrentamento, somado à falta de restrições em momentos chave em que alertas foram dados por parte de pesquisadores também são fatores relevantes para esse cenário.

“Não sabemos ainda como a mutação propicia maior transmissão, sabemos que a N501Y pode aumentar a intensidade com que a proteína spike se liga ao ACE2 humano, mas como isso leva a variante a ser mais transmissível pode precisar de uma explicação mais complexa, porque envolve aptidão viral, o ambiente em que a variante se encontra etc. Há muitos fatores a se entender para saber como a mutação específica faz com que a variante se transmita mais. Com certeza, não são apenas as mutações que levam a esse desfecho, o cenário em que elas se encontram podem conferir uma aptidão epidemiológica, ela pode conseguir achar um cenário para se tornar prevalente pelo próprio ambiente que pode facilitar essas características”, diz. 

Maior mobilidade facilita o surgimento de novas variantes

Em um estudo da Rede Análise COVID-19, foi identificado que a maior mobilidade facilita o surgimento de novas variantes. O estudo analisou os dados de mobilidade do Reino Unido e do Brasil – foi identificado aumento da mobilidade a partir de setembro.

Após comparar os dados entre Brasil e Reino Unido, o estudo identifica a necessidade de as restrições na mobilidade serem rígidas e por períodos longos para que possam surtir efeito na queda de casos.

Mellanie explica que, quanto maior o número de contaminações no país, maiores são as chances do vírus, ao fazer cópias de si mesmo em uma nova infecção, sofrer mutações e gerar variantes.

Momento mais crítico da pandemia: a urgência de restringir mobilidade

Mellanie reforça a urgência de restringir a mobilidade social e de a população aderir – ela cita preocupação com o comportamento da população no Rio Grande do Sul.

“É possível que a situação atual perdure por bastante tempo se não implementarmos medidas mais restritivas agora e, paralelo a isso, a população não aderir às medidas restritivas. Porque estamos observando todo o Rio Grande do Sul em bandeira preta e, mesmo assim, não foi observado uma diminuição de mobilidade como seria o desejado. É preciso que a população faça adesão às medidas, porque caso não sejam aderidas, é possível que medidas mais rígidas precisem ser impostas”, afirma.

Além dos registros de colapso do sistema de saúde, o número crescente de internações deixa a biomédica extremamente preocupada. Ela cita o caso do Hospital Moinhos de Vento, onde foi alugado um contêiner para alocar as vítimas por falta de capacidade, como simbólico do momento delicado.

“O cenário é muito sério. Não estamos vendo um pico dessa onda, estamos vendo um grande paredão de crescimento de casos sem perspectiva de quando isso vai parar. Já estamos vendo o colapso dos sistemas hospitalares, em seguida poderemos ver o colapso do setor funerário”, enfatiza. 

Cuidados redobrados: biomédica recomenda uso de máscara PFF2

Com o surgimento de novas variantes, Mellanie explica que os cuidados preventivos seguem os mesmos, mas sugere que sejam intensificados. Assim como recentemente passou a ser recomendado em países da Europa, a biomédica indica a troca das máscaras de pano pela máscara profissional do modelo PFF2.

“É preciso um foco maior na prevenção. As máscaras de tecido não parecem ser tão protetoras para uma variante potencialmente mais transmissivel, o ideal é usarmos de preferência a máscara PFF2. Precisamos reforçar ainda mais as nossas medidas de enfrentamento para lidar com essa variante possivelmente mais transmissível. É preciso fazer ainda mais o distanciamento, não aglomerar, fazer o que já sabemos, mas com cinco vezes mais intensidade”, finaliza.

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