Mundo | 19 de dezembro de 2016

Burnout: o sistema de saúde é uma “complicada bagunça”

Artigo aborda complexidade trazida pela prática médica moderna e sua dependência aos registros eletrônicos
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burnout é conhecidamente um problema endêmico entre os médicos (e demais profissionais de saúde), e o número de afetados está em ascensão. Esse sentimento de esgotamento não só prejudica a motivação com o trabalho, mas também pode comprometer a assistência ao paciente. O burnout é um fator que impulsiona a rotatividade no emprego, o absenteísmo (faltas), a baixa moral ou depressão. Está correlacionado com exaustão física, insônia, aumento do uso de álcool e drogas e conflitos familiares. Para os gestores de centros de saúde, deve ser um assunto de atenção especial para que se possa atingir níveis de qualidade aceitáveis.

Em 2010, o Comitê Econômico Conjunto do Congresso dos EUA (Congressional Joint Economic Committee) criou o fluxograma “Seu Novo Sistema de Cuidados de Saúde” (Your New Health Care System), um complicado fluxograma que tinha como objetivo mapear o sistema público (Obamacare). Como mostra um artigo do portal Stat News, diagramas de uma complicada rede de inter-relações que se cruzam entre centenas de escritórios, departamentos e programas do governo em um labirinto de informações.

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Fluxograma que mapeia o sistema público de saúde dos EUA

 

O gráfico do comitê ganha especial complexidade quando se adiciona uma camada ainda mais interligada de sistemas: as operadoras de saúde, sociedades de médicos e especialistas, juntas médicas estaduais e médicos legistas; escolas médicas, centros médicos acadêmicos e programas de pós-graduação médica; juntamente com uma multidão de players corporativos e setores interligados de biotecnologia, farmacêuticas, dispositivos médicos e de tecnologia da informação de saúde. Dentro desse fluxograma estão alguns dos 900 mil médicos em atividade nos EUA, assim como milhões de outros profissionais de saúde e as populações as quais eles servem.

Complexidade e epidemia

A complexidade deste sistema leva a uma epidemia de burnout, o esgotamento na profissão médica de hoje. Um estudo da Mayo Clinic (acesse, em inglês) mostrou que entre 2011 e 2014, a taxa de burnout médico subiu de 45% para 54% em todas as especialidades médicas.

O burnout e a insatisfação com o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal são particularmente graves para médicos de cuidados primários – figuras centrais nos cuidados de saúde. “Um sistema que já estava oscilando em 2011 foi pressionado pela adição de 20 milhões de vidas abrangidas pelo Affordable Care Act [o Obamacare criou, entre outras determinações, acesso e aumento da rede de cobertura, controle de preços e da qualidade do serviço prestado] . Não é de se admirar, neste contexto, que em Massachusetts, onde a cobertura quase universal encheu os consultórios médicos de cuidados primários, as reclamações de imperícia contra eles estão subindo. Pacientes e médicos se queixam da brevidade insatisfatória de visitas ao consultório, e muitos nutrem intensos sentimentos de antipatia para com os registros de saúde eletrônicos e crescentes encargos administrativos”.

Para aliviar o estresse e o burnout nas profissões médicas, o Stat News diz que é preciso “prestar atenção aos fatores do sistema que levam ao que chamamos de ‘crise de saúde ocupacional em medicina’. Nós recentemente pesquisamos 425 médicos atuantes, líderes de cuidados de saúde e executivos, buscando suas opiniões sobre a importância de oito abordagens para transformar os cuidados de saúde”. Os resultados foram apresentados na Conferência Internacional sobre Médico de Saúde [International Conference on Physician Health].

Aqueles que responderam à pesquisa concordaram que uma série de propostas de alterações no nível do sistema foram importantes dados a considerar na luta contra o burnout médico. O artigo apresenta oito abordagens de transformação, por ordem de importância percebida e facilidade de implementação descendente. O tópico principal foi rever os sistemas de registros de saúde eletrônicos complicados que exigem que médicos façam milhares de cliques todos os dias:

1 – Aperfeiçoar registros de saúde eletrônicos e tecnologias relacionadas para melhorar a experiência dos pacientes e seus médicos

2 – Reestruturar a rotina trabalho/vida pessoal dos médicos para promover um melhor auto-cuidado e equilíbrio entre vida profissional, especialmente para os médicos que são pais e precisam lidar com a “jornada dupla”

3 – Reorganizar o financiamento da educação médica para diminuir a dívida onerosa para os médicos em início de carreira (NR: decorrentes do financiamento recebido para cursar a faculdade), possível causa de excesso de trabalho em condições pouco seguras

4 – Dar mais ênfase na identificação de inteligência emocional na admissão de alunos em faculdades médicas

5 – Modificar fatores sistêmicos (por exemplo, reembolso, negligência médica) que impedem o trabalho em equipe multidisciplinar, o que pode aliviar o trabalho dos médicos

6 – Reequilibrar o financiamento e o foco da formação médica, para formar um maior número de médicos de cuidados primários

7 – Reforçar o reembolso dos médicos que se concentram em manutenção da saúde e cuidados primários

8 – Acelerar a mudança do atendimento por taxa de serviço (fee-for-service) para o uso de um atendimento orientado para os cuidados baseados em valor (remuneração/pagamento por valor)

“Era da padronização e serviços de elevada qualidade”

A intenção dos registros de saúde eletrônicos era inaugurar uma era de padronização e serviços de elevada qualidade. “Ironicamente, os nossos entrevistados encaram os registros de saúde eletrônicos como uma das principais causas de sofrimento na profissão médica”, diz o artigo. Um estudo publicado na revista Annals of Internal Medicine (ver aqui) mostrou que os médicos com atuação em consultórios gastam muito mais tempo interagindo com seus computadores do que com seus pacientes. Em um artigo de setembro do Wall Street Journal (leia aqui), os médicos Caleb Gardner e John Levinson abordam a deterioração da relação médico-paciente e aconselharam os profissionais a desligarem seus computadores para ouvir os pacientes.

Os médicos que assinam este artigo escreveram que há “muito pouca conversa no escritório. Esses profissionais também contemplam abandonar a prática da medicina porque se sentem forçados a ser um secretário e só é permitido para praticar a medicina ‘parcialmente’; e que já passou a hora de pararmos de virar as costas para os pacientes”.

Mesmo com muitas críticas ao sistema de saúde, o Stat News ressalta que é preciso reconhecer que “um dos principais fatores para essa complexidade é uma infra-estrutura de registro eletrônico de saúde desajeitada e demorada, que está cobrando um enorme esforço sobre o bem-estar de médicos e a vitalidade da prática médica. Os pacientes estão bem conscientes de que os computadores estão tomando mais a atenção dos médicos do que as pessoas, do que a experiência interpessoal no atendimento, e isso pode contribuir para uma variedade de resultados indesejáveis e não intencionais”.

Não será fácil remediar esse problema. “Mas uma forma de começar seria o próximo Bill Gates ou Steve Jobs criar uma plataforma de registro eletrônico atraente para o profissional de saúde, fácil de usar, que agrade médicos e pacientes”, encerra o artigo.

Acesse (em inglês), uma apresentação que trata sobre o tema, de Steven Adelman e Harris A. Berman (autores da matéria do STAT News aqui).

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