Estatísticas e Análises | 6 de setembro de 2020

Plasma convalescente: perfil do paciente elegível e outras questões importantes sobre o tratamento

Confira a análise de especialistas em matéria exclusiva do portal Setor Saúde
Plasma convalescente perfil do paciente elegível e outras questões importantes sobre o tratamento

O uso do plasma convalescente (material com anticorpos retirado do sangue de pacientes que já se recuperaram da Covid-19) é uma das alternativas na busca por tratamentos efetivos para a doença. Ainda que existam estudos sugerindo que o tratamento pode reduzir a mortalidade por Covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) adota um tom de cautela, afirmando que são inconclusivos os efeitos do tratamento, muito em função da falta de estudos amplos e randomizados.

Recentemente, a cientista-chefe da OMS, Soumya Swaminathan, ponderou que o tratamento ainda é experimental. “No plasma convalescente, um dos desafios é que cada indivíduo pode ter concentrações diferentes de anticorpos neutralizantes, e é muito difícil realmente testar e padronizar isso. Não é uma terapia padrão, porque o sangue está sendo retirado de diferentes pacientes e sendo transfundido”, afirmou Swaminathan. Ela ainda disse que vários ensaios clínicos estão acontecendo no mundo. Mesmo que em alguns casos tenha ocorrido benefício, estudos até agora são considerados pequenos até o momento.

A agência reguladora de medicamentos dos EUA, Food and Drug Administration (FDA) autorizou no dia 23 de agosto, o uso de plasma de forma experimental para tratamento da Covid-19 em pacientes graves. Ou seja, o plasma convalescente para o tratamento de COVID-19 ainda não foi aprovado para uso pelo FDA, mas está oficialmente regulamentado como um tratamento experimental. O governo norte-americano iniciou uma ampla campanha para incentivar doadores – pessoas que já se recuperaram da Covid – e assim, ampliar tratamentos e a base dados que pode vir a comprovar a eficácia do uso de plasma em pacientes com Covid-19.

No Brasil, a Anvisa também já permite o uso, igualmente de forma experimental e baseado nas resoluções brasileiras. Em nota técnica publicada no dia 3 de abril, a Anvisa segue o mesmo entendimento da OMS, a de que os estudos científicos têm sugerido resultados promissores, porém derivam de análises não controladas e com tamanho limitado de amostras. “No entanto, é papel da Anvisa alertar aos pesquisadores, profissionais médicos e aos pacientes que não existem evidências científicas conclusivas sobre a eficácia do tratamento de pacientes acometidos pela Covid-19 com o uso do plasma convalescente. Sendo assim, a Agência orienta que o plasma convalescente para Covid-19 deva ser usado em protocolos de pesquisa clínica, com os devidos cuidados e controles necessários, sem prejuízo do disposto em legislação específica, códigos de ética ou Resoluções do Conselho Federal de Medicina sobre a autoridade e conduta médica do profissional prescritor”, diz a nota técnica.

Para entender como vem ocorrendo os tratamentos com plasma, as vantagens e os resultados alcançados até o momento, o portal Setor Saúde buscou informações com algumas das instituições de saúde que têm utilizado o plasma convalescente: Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Hospital Moinhos de Vento, Hospital Ernesto Dornelles (HED) – todos de Porto Alegre – e o Hospital Virvi Ramos (Caxias do Sul) – primeiro a realizar o procedimento no Rio Grande do Sul. Além do tratamento com plasma convalescente, outros tratamentos que estão sendo utilizados contra a Covid-19, como o uso do corticoide dexametasona, foram abordados.

Uso experimental e ensaios clínicos

Concordando que ainda é necessário mais resultados em relação à eficácia do tratamento, o chefe do Serviço de Hemoterapia do HCPA, Dr Leo Sekine, reforça a necessidade de se manter neste momento a terapia, mesmo que experimental, até que se consiga ter um olhar mais apurado sobre vantagens e desvantagens. “Os estudos que temos até o presente momento não permitem posicionamento concreto sobre eficácia. Há grande heterogeneidade nas populações testadas, seja em termos de fatores de risco, seja em termos de tempo de doença. Certamente o plasma convalescente deve ainda ser considerado como terapia experimental, cuja eficácia deve ser aferida idealmente dentro do ambiente exclusivo de pesquisa clínica”.

No Clínicas, está em andamento um ensaio clínico sobre o tratamento, iniciado há pouco mais de um mês, com 160 participantes. Sekine, que também é diretor-médico do Centro de Processamento Celular do HCPA, e professor do Programa de Pós-Graduação em Medicina: Ciências Médicas da FAMED/UFRGS, destaca que os resultados serão divulgados em breve.

Para o chefe do Serviço de Pneumologia e Cirurgia Torácica do Hospital Moinhos de Vento, Dr Marcelo Gazzana, as experiências têm mostrado bons resultados, mas destacou que são necessários estudos clínicos maiores para melhores conclusões sobre o tratamento. “O que precisamos para uma resposta definitiva são ensaios clínicos maiores. Existem ensaios clínicos pequenos e mal desenhados. Um, por exemplo, administrou plasma depois de 30 dias de sintoma mediano. Isso é totalmente inadequado. Então, nós estamos aguardando estudos em andamento, ensaios clínicos nos quais existe um grupo tratado, um grupo controle, que aleatoriamente recebem o tratamento, e só esses estudos darão respostas mais definitivas. Por isso, neste momento, o plasma é considerado uma terapia experimental”.

Andréa Dal Bó, infectologista e coordenadora do serviço de infecção hospitalar do Hospital Virvi Ramos, explica que “os Estudos Científicos mais robustos sempre serão os prospectivos, randomizados e duplo-cego. Entretanto, diante da urgência em respostas, tais desenhos de Estudo nem sempre são factíveis de serem executados. Além disso, diante das evidências de que o plasma convalescente de fato reduz a mortalidade, devemos até repensar o desenho de estudo randomizado, visto que estaríamos não disponibilizando um tratamento eficaz para um determinado grupo de portadores de Covid-19, o que do ponto de vista ético não seria permitido.

Já a Gestora do Serviço de Emergência do Hospital Ernesto Dornelles (HED), pneumologista Juliana Cardoso Fernandes, entende que a pesquisa robusta exige tempo, o que atualmente não se tem, em virtude da urgência em salvar o maior número de vidas possível. “Todas questões que envolvem tratamentos novos na pandemia COVID19 tem essa limitação. Analisar efetividade de tratamentos exige análise científica robusta, investimento em pesquisa com estudos randomizados controlados metodologicamente bem feitos, mas principalmente tempo, que é justamente o que não temos. Nós médicos precisamos utilizar da melhor evidência que temos no momento aliado a trocas de experiências entre serviços de todo mundo, para oferecer alguma alternativa aos nossos pacientes. Se aguardarmos todas evidências científicas muitas oportunidades de tratamento podem ser perdidas”, defende.

Tratamento precoce com plasma convalescente (primeiras 72h após a hospitalização)

Estudos recentes têm sugerido que tratamento precoce com plasma convalescente (primeiras 72h após a hospitalização) poderia reduzir a mortalidade por Covid-19. Os especialistas analisaram a questão, que ainda carece de um consenso.

O dr. Leo Sekine do HCPA acredita, que o início o quanto antes, contribui de fato para este desfecho. “Cremos, sim, que o tempo de administração é fator importante na resposta à terapia. As evidências apontam para uma janela definida de tempo em que o plasma convalescente tem seus efeitos otimizados. No estudo desenvolvido no HCPA, os pacientes recebem o tratamento dentro de uma janela de 14 dias desde o início dos sintomas”.

O dr. Marcelo Gazzana, do Hospital Moinhos de Vento, por outro lado faz ressalvas sobre alguns estudos iniciais sobre que apontam as primeiras 72 horas como cruciais. “O plasma convalescente, nesses estudos observacionais, mostrou bons resultados em relação a desfechos duros, que a gente chama – mortalidade, tempo de hospitalização, melhora assintomática. Isso demonstra a experiência dos lugares onde foi feito, mas não são os melhores estudos. O que precisamos para uma resposta definitiva são ensaios clínicos maiores”, reforça.

“Os dados preliminares do Estudo do [Hospital] Virvi Ramos estão sendo avaliados, mas mostram uma tendência a confirmar os dados encontrados em outros estudos que mostram uma melhor resposta quanto mais cedo o plasma é transfundido”, diz Dal Bó.

Juliana Cardoso Fernandes, do HED, ressaltou que a experiência do Hospital ainda é incipiente. “Iniciamos o uso do plasma convalescente na COVID19 em final de julho de 2020, portanto ainda não podemos fazer conclusões. A literatura realmente é animadora nesse sentido e estamos priorizando o uso precoce quando indicado”, disse.

Hospital Moinhos de Vento oferece tratamento para COVID-19 com plasma de pacientes curados

Perfil do paciente elegível ao tratamento

Mas qual seria o perfil do paciente que mais tem se beneficiado do plasma convalescente? De forma geral, os especialistas destacam que o perfil é aqueles pacientes graves que demonstrem precisar de auxilio de oxigênio, ou seja, que apresentem quadro de oxigenação baixa. Todos os pacientes elegíveis ao tratamento são informados antecipadamente sobre os procedimentos, podem tirar dúvidas e caso aceitem a adoção da terapia, devem assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

“O perfil de paciente que mais se beneficiaria deste tratamento é o de pacientes com pneumonia grave pelo SARS-CoV-2 e que necessitam, portanto, de O2 (oxigênio) suplementar. Dentro do estudo do HCPA, são elegíveis pacientes acima dos 18 anos, apresentando a referida manifestação de doença e que aceitem participar da pesquisa através de termo de consentimento livre e esclarecido. O estudo conta com dois grupos de comparação, e é importante ressaltar que um dos grupos de alocação (que é aleatória) não recebe o tratamento em questão, servindo como base de comparação para avaliação de desfechos”, explica Leo Sekine (HCPA).

Marcelo Gazzana (Hospital Moinhos de Vento) segue na mesma linha. “Pelos estudos que se têm, os pacientes que parecem se beneficiar mais são aqueles que estão com a oxigenação baixa, que precisam usar o oxigênio, incluindo os que progridem para a utilização da ventilação mecânica. Esse é o protocolo que usamos no Hospital Moinhos de Vento para o uso de plasma. Pacientes que não usam oxigeno, não são candidatos a usarem plasma convalescente. ”

“Importante ressaltar que o plasma convalescente ainda é considerado uma terapia experimental, porque não tem um estudo definitivo que mostra se ele funciona ou não funciona, o que existem são estudos que sugerem resultados. Por isso o paciente tem que ser informado que ainda é uma terapia não aprovada e que tem indicações precisas e riscos. Depois de ser totalmente informado, tirar suas dúvidas, ele tem que assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Não se usa plasma para paciente com doença leve e nem de forma preventiva. Se o paciente teve contato com a COVID-19 mas está bem, não existe nenhuma indicação de usar plasma nesses casos”, explica Marcelo Gazzana.

Andréa Dal Bó (Virvi Ramos), explica o protocolo para identificação do paciente elegível ao tratamento na instituição. “Todos os pacientes graves, ou seja, aqueles internados em UTI e com até 14 dias do início dos sintomas de Covid-19. No Estudo do Virvi Ramos, os critérios são estar internado em UTI, ter idade acima de 18 anos e ter diagnóstico confirmado de Covid-19 por RT-PCR. ”

Juliana Fernandes do HED, destaca que “o perfil do paciente com melhor desempenho ainda está sendo estudado, o que a literatura vem apontando é o uso precoce no período entre 7 e 14 dias do início dos sintomas, englobando casos predominantemente respiratórios mais graves que necessitem de suporte de oxigênio e hospitalização, esse parece ser o momento mais efetivo do tratamento. ”

Número de pacientes que já receberam o procedimento no hospital e como vem sendo a recuperação

Os dados do HCPA ainda estão sendo compilados até o fechamento desta matéria, e serão divulgados nos próximos dias, conforme Leo Sekine.

No Hospital Moinhos de Vento, Marcelo Gazzana diz que até o final de agosto, 124 pacientes tinham recebido plasma convalescente para o tratamento da COVID-19. “Quase 80% dos pacientes internados com a infecção no hospital já tiveram alta. A nossa impressão é que, aqueles tratados com plasma, se recuperam bem, apresentam melhora na oxigenação e dos sintomas e conseguimos evitar UTI. Mas isso é uma impressão. Estamos fazendo um trabalho científico, já aprovado pelo Comitê de Ética, para comparar nossos resultados antes de usarmos plasma no tratamento com os resultados depois que começamos a oferecer o tratamento experimental, no dia 2 de junho. Com esse estudo teremos respostas mais definitivas”.

Já no Hospital Virvi Ramos, os resultados também têm sido benéficos. “Até a presente data, foram 40 pacientes (no domingo, 6, o número chegou a 44). Desses 13 (14 no dia 06) receberam alta hospitalar com boa recuperação”, diz Andréa Dal Bó.

No Ernesto Dornelles, “até o momento foram 19 transfusões de plasma, primeira realizada em 24 de julho e oito pacientes já tiveram alta”, anunciou Juliana Fernandes.

Hospital Virvi Ramos realiza a primeira transfusão de plasma convalescente no tratamento da Covid-19_

Média de tempo em que a pessoa fica internada e complicações mais recorrentes

O tempo de internação do paciente que passa por um tratamento de plasma convalescente varia de 7 a 20 dias, nos hospitais consultados.

Conforme Marcelo Gazzana (Hospital Moinhos de Vento), o período da internação vai depender muito da gravidade. “As pessoas ficam internadas, em média, de 7 a 10 dias. Isso depende da gravidade. As complicações mais comuns são a superinfecção, ou seja, desenvolver uma pneumonia bacteriana sobre a pneumonia viral, e eventos trombóticos como embolia pulmonar e trombose venosa profunda. Para evitar essas situações, a gente faz uma monitorização intensiva e tratamento preventivo para evitar a trombose.

No Virvi Ramos, segundo Andréa Dal Bó, “a média de tempo de internação é de 16 dias. As complicações mais frequentes são infecções bacterianas sobrepostas. ”

E no HED, a média varia de 8 a 20 dias. “Nossa média de internação oscila entre 8 e 20 dias, dependendo da gravidade do caso e necessidade de tratamento em unidade de terapia intensiva e ventilação mecânica. A maioria dos casos com tratamento convencional iniciaram seguimento ambulatorial a partir de junho e os mais graves exigem tempo de reabilitação maior. Os casos que receberam plasma são recentes, portanto seguimento ainda está sendo feito. Nosso primeiro caso foi de um médico da instituição que está com recuperação excelente”, disse Juliana Fernandes.

Outros tratamentos e o uso da dexametasona

Os especialistas dos hospitais Moinhos de Vento, Virvi Ramos e Ernesto Dornelles falaram sobre como vem sendo a resposta a outros tratamentos que estão ajudando a diminuir a mortalidade por Covid-19 e como estão sendo os resultados observados pelo uso da dexametasona – em estudos recentes foram verificadas a redução de mortalidade em pacientes graves com Covid-19 e a diminuição do tempo de uso de ventilação mecânica.

“Entre os outros tratamentos que se faz, o padrão é usar dexametasona naqueles pacientes que estão com queda na oxigenação. Se usa oxigênio, se dá um bom suporte, e talvez isso seja o que faz a maior diferença: ter um bom hospital, com um bom suporte médico e assistencial. A gente também usa antibiótico sempre que precisa, quando tem uma infecção por bactéria junto, e usa anticoagulante para aqueles pacientes que fazem embolia pulmonar”, explicou Marcelo Gazzana (Hospital Moinhos de Vento).

“Todos os pacientes que recebem plasma convalescente também recebem dexametasona. Por isso, é difícil avaliar separadamente os dois tratamentos nos pacientes em UTI. Entretanto, aqueles que internam em enfermaria recebem dexametasona e tem se observado uma boa resposta, embora não se tenha avaliado isso do ponto de vista estatístico”, salienta Andréa Dal Bó (Virvi Ramos).

Hospital de Clínicas de Porto Alegre inicia pesquisa com plasma sanguíneo para tratar Covid-19

Juliana Fernandes disse que outros tratamentos como suporte ventilatório intensivo, uso de corticosteróides (dexametasona e similares), anticoagulantes e antibióticos quando indicados vêm sendo utilizados desde início da pandemia. “Estamos atingindo essa semana 250 altas recuperadas de COVID 19 e nossos dados sobre efetividade de cada tratamento estão sendo analisados. Preliminarmente observamos respostas variáveis, sendo os indivíduos idosos acima de 75 anos, que necessitaram ventilação mecânica e com mais de quatro comorbidades os mais vulneráveis a desfechos desfavoráveis. ”

Ao final da entrevista, Juliana Fernandes ressaltou que “estar na linha de frente da assistência a COVID-19 exige dos médicos e instituições muito empenho, dedicação, resiliência e acima de tudo coragem para enfrentar o novo com qualidade e segurança para nossos pacientes. ”

HCPA tem campanha para buscar doadores

Leo Sekine aproveitou para solicitar o apoio da população na busca por doadores. “Havendo interesse em doar o plasma (para aqueles pacientes recuperados de COVID-19), os seguintes critérios são exigidos: documentação de infecção por SARS-CoV-2 por RT-PCR (exame do cotonete) ou Sorologia (sangue). Devem ter mais de 14 dias assintomático, de 18 a 60 anos, e homens e mulheres nulíparas. Contatar através do e-mail doadordeplasma@hcpa.edu.br .” Após o contato do HCPA, o doador candidato passa por um processo de qualificação, onde todos os requisitos são conferidos. Só depois de cumpridas estas etapas é que é agendada a doação.

Tratamento com plasma convalescente também vem sendo utilizado em outros hospitais

Além dos hospitais que participaram da entrevista, outros hospitais confirmaram que também estão utilizando o plasma convalescente para a Covid-19: Hospital São Lucas da PUC-RS, Hospital Mãe de Deus, Hospital Tacchini (Bento Gonçalves), Hospital Regional Santa Lúcia (Cruz Alta) e Hospital de Erechim. Na última quarta-feira (2), o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) lançou campanha para captar doadores de plasma convalescente. A instituição também passará a utilizar o procedimento. No GHC, atualmente há dois estudos científicos em andamento sobre o assunto, um interno e outro multicêntrico.

Saiba mais

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