Estatísticas e Análises | 21 de novembro de 2016

5 mitos a respeito dos antibióticos

Esclarecimentos e implicações sobre falsas crenças largamente disseminadas
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O aparecimento dos antibióticos, no final da década de 1920, transformou a ciência e modernizou a medicina. Pela primeira vez, era possível combater e vencer bactérias causadoras de diversas infecções. Esses medicamentos agem contra infecções bacterianas, não sendo efetivos contra infecções de origem viral, parasitológica ou fúngica.

Os antibióticos podem ser bactericidas (destroem diretamente as bactérias) ou bacteriostáticos (impedem a multiplicação das mesmas), facilitando o trabalho de nosso sistema imune no controle da infecção. Muitas décadas depois do advento, a literatura tem muitas informações sobre os antibacterianos. Porém, nem tudo o que se sabe é verdadeiro. Nem mesmo o surgimento dessas drogas.

Um artigo do portal Medscape busca esclarecer cinco mitos sobre antibióticos e resistência amplamente aceitos.

1º mito: O homem inventou os antibióticos no Século XX

O primeiro antibacteriano de uso clínico seguro e eficaz foi o prontosil rubrum, um derivado da sulfa sintetizado em 1931. No entanto, o prontosil não foi o primeiro antibacteriano a ser inventado e os seres humanos não foram os inventores. Análises genéticas indicam que as bactérias inventaram os antibióticos, e os mecanismos de resistência antibiótica, em algum momento entre 2 e 2,5 bilhões de anos atrás. As bactérias vêm se matando umas às outras com estas armas, e usando os mecanismos de resistência para se proteger contra essas mesmas armas há 20 milhões de vezes mais tempo do que conhecemos a existência dos antibióticos.

Em 2011 foi publicado um estudo no periódico PLoS One (chamado Antibiotic resistance is prevalent in an isolated cave microbiome), no qual os pesquisadores exploraram uma caverna profunda em Carlsbad, no Novo México (EUA), uma formação geológica que permaneceu isolada da superfície do planeta durante quatro milhões de anos. A parte estudada da caverna nunca havia sido visitada por seres humanos. Os pesquisadores fizeram culturas dos muitos tipos de bactérias das paredes das cavernas. Cada cepa era resistente a pelo menos um antibiótico moderno e a maioria era multirresistente. Foi observada resistência não somente aos antibióticos naturais, como também a substâncias sintéticas que não tinham sido criadas até as décadas de 1960 a 1980, incluindo fluoroquinolonas, daptomicina e linezolida.

Implicações de derrubar este mito. Depois de dois bilhões de anos de guerra evolutiva microbiana, os micróbios já inventaram antibióticos para envenenar cada caminho bioquímico possível, bem como mecanismos de resistência para proteger cada uma dessas vias. Assim, os mecanismos de resistência aos antibióticos que ainda não tenham sido inventados já estão amplamente distribuídos na natureza. A resistência é inevitável.

2º mito: O uso inadequado dos antibióticos causa o aparecimento da resistência

Mito reiteradamente repetido sugere que se pudéssemos eliminar o uso inapropriado dos antibióticos, não haveria resistência. No entanto, todo o uso de antibióticos gera pressão seletiva matando as bactérias. O uso adequado aplica a mesma pressão seletiva que o uso inadequado. A diferença é que se faz necessário parar o uso inadequado porque ele não oferece nenhum benefício. Pelo contrário, o uso apropriado de antibióticos é importante para reduzir a morbidade e a mortalidade decorrentes das infecções.

Implicações de derrubar este mito. Sempre haverá o surgimento de resistência pelo uso adequado de antibiótico, mas o benefício do uso apropriado para pacientes e sociedade supera o prejuízo coletivo. Já o uso inadequado, sem benefício atrelado, não oferece nada que compense o problema da pressão seletiva promovendo a resistência aos antibióticos. Eliminar o uso inapropriado dos antibióticos não vai acabar com as bactérias resistentes, mas pode retardar esse processo, sem abrir mão dos benefícios significativos decorrentes do uso correto de antibióticos.

3º mito: Para prevenir a resistência, os pacientes devem tomar todas as doses prescritas dos antibióticos, mesmo depois de já se sentirem melhor

Embora esta crença (que vem da década de 1940) seja muito difundida e profunda, não há dados que sustentem a ideia de que continuar a tomar antibióticos após a resolução dos sinais e sintomas de infecção reduza o aparecimento de resistência aos antibióticos, de acordo com uma pesquisa (chamada The new antibiotic mantra – shorter is better) publicada no JAMA Internal Medicine. De fato, estudos descobriram reiteradamente que as terapias com antibióticos de curta duração têm menos chances de provocar resistência, o que vai ao encontro dos princípios fundamentais da seleção natural.

Cada ensaio clínico randomizado que já comparou as terapias com antibióticos de curta duração à terapia de longa duração, para vários tipos de infecções bacterianas agudas (como sinusite bacteriana aguda, pneumonia comunitária, pneumonia nosocomial ou pneumonia associada à ventilação mecânica, infecções do trato urinário e infecções intra-abdominais complicadas), descobriu que as terapias de curta duração são tão eficazes quanto as outras. Quando avaliadas, as terapias de curta duração tiveram menor aparecimento de resistência.

Implicações de derrubar este mito. É preciso um novo “mantra” para os antibióticos: “menos é melhor”. Os pacientes devem ser informados de que ao se sentirem melhor, com a resolução de sintomas de infecção, devem falar com o médico para determinar se os antibióticos podem ser suspensos mais cedo. Os médicos devem ser receptivos a este conceito e não temer personalizar a duração da terapia antibiótica. Continuar a administração de antibióticos após a resolução dos sintomas de infecções bacterianas agudas (não as crônicas, como a osteomielite, a tuberculose ou a actinomicose) não traz benefícios para os pacientes e, provavelmente, ajuda a selecionar bactérias resistentes aos antibióticos.

4º mito: Quando a resistência aos antibióticos emerge, geralmente é consequência de novas mutações no local da infecção

Mito que provavelmente deriva do reconhecimento correto de que a resistência na tuberculose ocorre no local da infecção, decorrente de mutações espontâneas direcionadas aos tuberculostáticos. No entanto, como demonstrou um recente estudo publicado no Journal of Infectious Diseases (chamado Important complexities of the antivirulence target paradigm: a novel ostensibly resistance-avoiding approach for treating infections), a tuberculose tem características únicas, distintas da maioria das infecções bacterianas agudas. Não há reservatório ambiental para a tuberculose e o Mycobacterium tuberculosis não faz parte da flora humana normal. A resistência da tuberculose só pode ocorrer no local da infecção no organismo. A tuberculose também contêm alta densidade de bacilos (acima de 1012 por grama), o que favorece o surgimento de resistência na monoterapia, com base na frequência estatística de mutações espontâneas para substâncias como a isoniazida e a rifampicina.

Por outro lado, quando são usados antibióticos típicos (diferentes da isoniazida, específica para a tuberculose), inevitavelmente causam pressão seletiva na flora bacteriana habitual. Assim, a resistência não costuma surgir no sítio da infecção durante a administração de antibióticos, mas sim entre as bactérias do intestino ou da pele, como resultado do compartilhamento genético de mecanismos de resistência preexistentes. O enriquecimento da flora habitual com resistência pode gerar novas infecções causadas por patógenos resistentes e à propagação de patógenos resistentes por contato direto com outras pessoas ou fômites (objeto inanimado ou substância capaz de absorver, reter e transportar organismos contagiantes ou infecciosos).

Implicações de derrubar este mito. Na maioria dos casos, não se sabe quando a resistência surge nos pacientes. O fato de a infecção do paciente ter se resolvido com terapia antibiótica prolongada ou de espectro desnecessariamente amplo não significa que não houve indução de resistência. Ao contrário, é muito provável que, após exposição aos antibióticos, em algum lugar no corpo do paciente as cepas da flora habitual tenham sido enriquecidas com resistência aos antibióticos utilizados. Essas cepas podem causar infecções futuras, ou se espalhar para outras pessoas na comunidade ou nos hospitais.

5º mito: Os antibióticos bactericidas oferecem melhores resultados clínicos e menor risco de surgimento de resistência do que os bacteriostáticos

Crença clínica generalizada sem embasamento em evidências. Ao contrário do que se costuma acreditar, os antibióticos bacteriostáticos matam bactérias. Eles simplesmente necessitam de maior concentração para atingir os limiares específicos de redução bacteriana. A definição formal de um antibiótico bactericida é ser um antibiótico cuja concentração bactericida mínima é quatro vezes ou mais acima da sua concentração inibitória mínima.

A concentração bactericida mínima é a concentração do fármaco que promove redução de 1000 vezes da densidade bacteriana após 24 horas de crescimento. A concentração inibitória mínima é a concentração que inibe o crescimento visível após 24 horas de crescimento. Estas definições, como salienta o Medscape, são arbitrárias: “por que a concentração bactericida mínima exige uma redução de 1000 vezes da densidade bacteriana em oposição a uma redução de 100, 500, 5000 ou 10000 vezes? Por que 24 horas? Por que concentração bactericida mínima tem de ser mais de quatro vezes acima da concentração inibitória mínima, em vez de o dobro, ou 16 vezes, ou 23 vezes?”, questiona o artigo.

Por fim, um antibiótico que obtém uma redução superior a 1.000 vezes da densidade bacteriana, mas o faz a uma concentração oito vezes acima da concentração inibitória mínima, é considerado bacteriostático, embora claramente mate as bactérias. Como esses termos foram definidos por convenção e não se baseiam em princípios científicos específicos, talvez o fato de não haver comprovação clínica das vantagens dos antibióticos bactericidas sobre os bacteriostáticos não seja surpreendente. Uma revisão sistemática da literatura identificou 28 ensaios clínicos randomizados que compararam a eficácia de antibióticos bacteriostáticos à dos bactericidas, um a um, para pacientes com infecção bacteriana invasiva.

Quase nenhum estudo encontrou diferenças significativas de eficácia entre os antibióticos bacteriostáticos e bactericidas. Apenas três observaram que a linezolida (bacteriostática) tem maior eficácia que a vancomicina (bactericida), para o tratamento de infecções complicadas da pele, e um observou tendência à superioridade da linezolida. Um estudo constatou que a linezolida teve maior eficácia que a vancomicina, para o tratamento da pneumonia por Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA), e outro verificou que a linezolida teve maior eficácia que as cefalosporinas na pneumonia pneumocócica. Já o estudo que comparou a tigeciclina ao imipeném para o tratamento da pneumonia associada à ventilação mecânica constatou que um antibiótico bactericida teve maior eficácia do que um bacteriostático, sendo a tigeciclina menos eficaz. No entanto, a análise farmacológica determinou que a dose de tigeciclina utilizada no estudo foi muito baixa, resultando em níveis farmacológicos inadequados em comparação à sensibilidade das bactérias responsáveis pela infecção; quando foi feito um estudo subsequente com o dobro da dose de tigeciclina, a eficácia foi similar à do imipeném para a mesma doença. Portanto, não há evidência de que os antibióticos bactericidas tenham maior eficácia clínica do que os antibióticos bacteriostáticos. Mais estudos têm comprovado a superioridade de antibióticos bacteriostáticos sobre os bactericidas do que o inverso.

 Ensaios clínicos randomizados comparando antibióticos bacteriostáticos a bactericidas:

Doença

Medicamentos

Eficácia

Febre tifoide

Cloranfenicol (bacteriostático) ou azitromicina  (bacteriostático) vs. levofloxacino (bactericida) ou cefixima (bactericida)

Sem diferenças significativas

Celulite

Doxiciclina (bacteriostático) vs. SMX/TMP (bactericida)

Sem diferenças significativas

Clamídia (genital)

Azitromicina (bacteriostático) vs. rifalazil (bactericida)

Sem diferenças significativas

Meningite meningocócica

Cloranfenicol (bacteriostático) vs. ceftriaxona (bactericida)

Sem diferenças significativas

Neutropenia febril

Linezolida (bacteriostático) vs. vancomicina (bactericida)

Sem diferenças significativas

Infecções por MRSA (diferentes sítios de infecção)

Linezolida (bacteriostático) vs. SMX/TMP + rifampicina (bactericida)

Sem diferenças significativas

Infecções por Gram-positivos em crianças

Linezolida (bacteriostático) vs. vancomicina (bactericida)

Sem diferenças significativas

Infecções da pele

Linezolida (bacteriostático) vs. vancomicina (bactericida)

Sem diferenças significativas

Infecção da corrente sanguínea por Gram-positivos associada a cateter e infecções cutâneas

Linezolida (bacteriostático) vs. vancomicina (bactericida)

Sem diferenças significativas

Pneumonia comunitária grave em crianças

Cloranfenicol (bacteriostático) vs. beta-lactâmico + gentamicina (bactericida)

Sem diferenças significativas

Pneumonia comunitária

Doxiciclina (bacteriostático) vs. beta-lactâmico ou fluoroquinolona (bactericida)

Sem diferenças significativas

Pneumonia de aspiração

Clindamicina (bacteriostático para anaeróbios) vs. beta-lactâmico (bactericida)

Sem diferenças significativas

Pneumonia nosocomial

Linezolida (bacteriostático) vs. vancomicina (bactericida)

Sem diferenças significativas

Pneumonia associada à ventilação mecânica

Tigeciclina (bacteriostático) vs. imipeném (bactericida)

Sem diferenças significativas

Celulite

Linezolida (bacteriostático) vs. vancomicina (bactericida)

Linezolida (bacteriostático) foi superior

Pneumonia comunitária por Streptococcus pneumoniae

Linezolida (bacteriostático) vs. cefalosporina (bactericida)

Linezolida (bacteriostático) foi superior

Pneumonia nosocomial por MRSA

Linezolida (bacteriostático) vs. vancomicina (bactericida)

Linezolida (bacteriostático) foi superior

Pneumonia associada à ventilação mecânica

Tigeciclina (bacteriostático) vs. imipeném (bactericida)

Imipeném (bactericida) foi superior

Implicações de derrubar este mito. Embora médicos continuem preferindo antibióticos bactericidas, não há nenhuma evidência de que isso gere resultados clínicos superiores aos dos bacteriostáticos, nem que os bactericidas previnam com maior eficácia o aparecimento de resistência. O antibiótico ser bacteriostático ou bactericida não deve ser o fator determinante da terapia para os pacientes.

Conclusão

Não há fim para a luta contra as bactérias, é uma guerra que, provavelmente,  não se pode vencer, e nenhum medicamento poderá evitar o surgimento de resistência aos antibióticos. Assim, é fundamental que os antibióticos não sejam desperdiçados. “Eles não devem ser prescritos para pacientes que não têm infecção bacteriana. Quando apropriado, prescrever a substância com espectro mais estreito e pelo menor tempo possível para tratar as infecções bacterianas”, sugere o artigo do Medscape.

Os médicos não devem instruir os pacientes a tomar todas as doses prescritas mesmo depois de se sentirem melhor. “Em vez disso, concentre-se em esquemas baseados em evidências, de curta duração, e se os sintomas do paciente forem resolvidos antes de concluir o curso da terapia antibiótica, oriente a entrarem em contato para discutir se devem suspender o antibiótico antes do tempo previsto”. Também é válido incentivar a parar mais cedo quando os sintomas desaparecerem.

A ausência de aparecimento de resistência no local da infecção não pode ser motivo de tranquilidade. Ao prescrever um antibiótico, o profissional está selecionando a resistência no microbioma do paciente. “As bactérias resistentes colonizam o paciente e podem provocar futuras infecções resistentes aos antibióticos. Ao escolher um esquema antibiótico, o fato de ser bactericida ou bacteriostático é totalmente irrelevante”, encerra o artigo.

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