Pulmão artificial fornece suporte a pacientes em estado crítico com Covid-19 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre
Chefe do Serviço de Cirurgia Torácica do Clínicas, Dr Mauricio Saueressig, detalhou ao portal Setor Saúde o uso da ECMO
Um suporte pulmonar que pode salvar a vida de pacientes com Covid-19 em estado gravíssimo, decorrente da síndrome da angústia respiratória aguda (SARA), já salvou a vida de dois pacientes no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), umas das instituições de referência no tratamento da doença no Rio Grande do Sul. Trata-se da ECMO (extracorporeal membrane oxigenation) que funciona como um pulmão artificial para o paciente, usando um circuito de tubos, bomba, oxigenador e aquecedor que fica instalado fora do corpo.
No Sul do país, o HCPA é pioneiro na utilização do procedimento, disponível desde 2012 na instituição. Em entrevista ao Setor Saúde, o chefe do Serviço de Cirurgia Torácica do HCPA e coordenador do Programa de ECMO da instituição, professor e médico Mauricio Saueressig, explica como é realizado o suporte, quais tipos de pacientes são elegíveis e em qual situação, e faz um apelo: que a ECMO, que exige um custo elevado, passe a ser financiada pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A ECMO contra a Covid
A oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) é um dos principais dispositivos de suporte de vida extracorpóreo utilizado nos dias atuais. A tecnologia serve para duas modalidades: suporte respiratório e suporte cardíaco. No mundo, segundo informações do dr. Saueressig, foram realizadas mais de duas mil ECMOs para Covid-19, e 55% dos pacientes tratados conseguiram se recuperar.
O circuito padrão da ECMO é composto por bomba de propulsão de sangue, oxigenador, cânulas de drenagem e retorno do sangue, sensores de fluxo e pressão, sistema de controle de temperatura para resfriamento ou aquecimento do sangue, e pontos de acesso arterial e venoso para coleta de sangue no circuito. As indicações da ECMO podem ser divididas em quatro categorias:
Insuficiência respiratória hipoxêmica
Insuficiência respiratória hipercápnica
Choque cardiogênico
Parada cardíaca
ECMO: suporte respiratório e cardíaco
Em ambos os suportes (respiratório e cardíaco), o tratamento é indicado para pacientes que não tenham uma idade muito avançada e que não apresentem comorbidades.
“Não podem ser pacientes muito idosos, que podem ter mais malefícios do que benefícios com a ECMO. É indicado para pacientes que tiveram algum tipo de pneumonia, seja bacteriana ou viral, como estamos observando com a Covid, desenvolvendo a SARA (Síndrome da Angústia Respiratória Aguda), quando o pulmão fica branco e o paciente entra em insuficiência respiratória refratária ao tratamento tradicional, desenvolvendo hipoxemia”, explica.
Saueressig também explica como a ECMO cardíaca pode salvar a vida de um paciente em estado crítico. “Com a ECMO cardíaca, hemodinâmica, temos que canular uma artéria. O sangue, ao invés de voltar por uma veia, volta por uma artéria. É dado oxigênio e suporte hemodinâmico, ou seja, o paciente que está em choque, com pressão baixa, por uma falência cardíaca terminal, ou por um infarto do miocárdio, morre muitas vezes por não ter pressão. Com a ECMO cardíaca canulando em uma artéria, conseguimos dar pressão suficiente para os tecidos periféricos serem perfundidos e o paciente não entrar em quadro de hipoxemia e isquemia sistêmica”, diz.
Fornecimento de oxigênio ao pulmão e parâmetros protetores
A partir do suporte, é possibilitado que diminua a pressão enviada aos pulmões dos pacientes. “A ECMO fornece oxigênio ao paciente, e podemos reduzir os parâmetros do ventilador mecânico, porque quando estamos ventilando o paciente ao extremo, está sendo dada muita pressão dentro da via aérea, provocando um estresse no alvéolo, onde ocorre as trocas de oxigênio. Essa pressão produz uma reação inflamatória, é um ciclo vicioso: quanto mais oxigênio é fornecido ao paciente, maior a pressão, pior fica o pulmão do paciente. A ECMO permite que seja fornecido o oxigênio que o paciente precisa, reduzindo esses parâmetros ventilatórios até parâmetros que chamamos de protetores, que não provocam dano a mais ao pulmão”, diz.
“A ECMO não trata a doença, os danos, mas permite que o pulmão possa repousar. Técnicos de enfermagem; enfermeiros; intensivistas; perfusionistas, que são quem montam o equipamento e cuidam do equipamento e cuidam de forma mais próxima; e os cirurgiões, que basicamente são da cirurgia torácica, área que chefio atualmente”, frisa.
Como funciona a estrutura
O médico também explica como funciona a estrutura da ECMO. “Precisamos de um circuito com tubulações onde o sangue vai circular e a membrana, com um tecido de polimetilpenteno. O sangue passa entre as malhas dessa rede, saindo de uma grande veia do corpo, puxado do corpo por uma bomba centrífuga. Tiramos, em média, quatro a cinco litros de sangue por minuto. Esse sangue é puxado, passa por essa malha, que é a membrana de ECMO, e esse sangue venoso então é oxigenado pela transferência de oxigênio do interior desta malha. A malha é oca, finíssima, com milímetros de diâmetro. É uma alta tecnologia. Por dentro da malha, corre o oxigênio, o ar passa por dentro da membrana. E esse oxigênio volta para o paciente oxigenado. Em média, puxamos de 4 a 5 litros, dependendo do perfil do paciente”, diz.
Programa: complexidade e multidisciplinaridade
Saueressig explica porque considera a ECMO um programa, abordando a multidisciplinaridade necessária para que o suporte seja utilizado. “É um programa porque envolve uma multidisciplinaridade, existem vários médicos de várias disciplinas e não médicos que fazem parte desse cuidado especial, com perfusionistas, fisioterapeutas, enfermeiros, técnicos de enfermagem. É uma equipe multidisciplinar, por isso digo que é um programa”, afirma.
De acordo com o coordenador, a ECMO é um suporte que auxilia, por exemplo, um paciente com hipoxemia – insuficiência respiratória aguda e refratária ao tratamento convencional (ventilação mecânica). “A ventilação mecânica pode aumentar a fração de oxigênio em até 100%. Mais do que isso, começamos a usar outros artifícios. Colocamos o paciente em prona, de barriga para baixo por horas, utilizamos óxido nítrico. Se mesmo com esses mecanismos, o paciente continua com hipoxemia, pode ser avaliado para a ECMO”, explica.
O médico enfatiza que, apesar do suporte que a ECMO fornece, o ponto fundamental para o tratamento da Covid-19 nos hospitais é contar com Centros de Terapia Intensiva (CTIs) bem equipados, além de uma equipe de profissionais bem treinada para lidar com as complexidades impostas pelo coronavírus.
Resultados no Hospital de Clínicas
O médico explica que, até o momento, sete pacientes com Covid-19 foram tratados com ECMO no Clínicas. Eles têm entre 40 e 50 anos de idade, sem comorbidades.
“Quatro estão em tratamento, dois já saíram do Hospital, muito bem, e um infelizmente faleceu. O paciente que faleceu teve outras complicações, passou 43 dias em ECMO, chegou a sair do ECMO, mas novamente teve complicações e veio a óbito”, detalha.
O médico explica que o Hospital de Clínicas pode realizar cinco tratamentos simultâneos com ECMO – atualmente, são quatro pacientes sendo tratados com o suporte. “O Hospital de Clínicas conseguiu financiamento para a Covid, que contou com expansão de UTI, e, além disso, nos possibilitou o investimento necessário para oferecermos o tratamento de ECMO. É importante saber que esse material está financiado também por pesquisa, financiada pelo Governo Federal para ECMO. Porém, tirando a pesquisa e a verba federal, o SUS não paga. Além disso, os centros de ECMO precisam ser extremamente especializados, não se pode fazer o procedimento em qualquer hospital, pois é preciso uma equipe muito bem treinada”, diz.
HCPA já realizou mais de 60 ECMOs
O uso da tecnologia exige uma equipe treinada e experiente. “Para ter essa tecnologia, é preciso uma equipe multidisciplinar. Desde 2012, o Clínicas já realizou mais de 60 ECMOs de diversas indicações, mas a maior indicação é essa, em pacientes com falência respiratória aguda que não respondem ao tratamento conservador”, diz. A maioria dos tratamentos foram demandados em função da SARA, geralmente secundária a uma pneumonia bacteriana. De acordo com o médico, há casos em que foi utilizado durante e no pós-operatório de transplante pulmão, além de ser utilizado para casos de falência cardíaca.
O médico destaca duas crianças que tiveram suas vidas salvas pelo suporte da ECMO. “No ano passado, tivemos um caso de uma criança, de dois anos de idade, que conseguimos colocar ECMO. Essa criança teve uma infecção pulmonar muito grave, entrando em falência respiratória, além das complicações da pneumonia. Conseguimos colocar ECMO e ela saiu muito bem. Outra criança, no mês passado, também com complicação respiratória, de oito anos de idade, também conseguiu se recuperar bem”, diz.
Boate Kiss
Além da tragédia atual da Covid-19, a ECMO também esteve presente em outra tragédia sofrida pelo Rio Grande do Sul: a tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, em 2013, que vitimou 242 pessoas. “Relembro outra tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul, que foi a da Boate Kiss, em 2013, em que tivemos a maior experiência com a ECMO, que tivemos um impulso maior do nosso programa”, afirma.
Financiamento para ECMO
Saueressig faz um apelo contra a falta de investimento público para o suporte. “Gostaria que os nossos gestores, principalmente do SUS, reconhecessem a importância da ECMO e repassassem o pagamento de ECMO. Ou seja, fornecessem financiamento, incentivando a criação de centros de ECMO para quem não pode pagar, sendo disponíveis no SUS. Antes, o Hospital de Clínicas pagava por conta própria o tratamento de ECMO, e pode chegar um momento em que o Clínicas não possa mais pagar. Só para ter uma ideia, uma membrana custa 15 mil reais. O SUS não paga. Atualmente, estamos com uma verba de pesquisa para a Covid que nos possibilita usar o suporte, mas não temos pagamento sistemático”, finaliza.