Cloroquina e hidroxicloroquina: Estudo observacional não consegue confirmar benefícios
Estudo publicado na Lancet compreende amostra de mais de 96 mil pessoas
Um novo estudo divulgado sexta-feira (22) preconiza que a cloroquina e hidroxicloroquina (medicamentos aprovados para a malária) aumentam o risco de morte e de arritmias em doentes hospitalizados com covid-19. O estudo, publicado sexta-feira (22) na revista científica Lancet, foi conduzido pelo cardiologista Mandeep R. Mehra, que atua no Brigham e Women’s Hospital Heart and Vascular Center e na Harvard Medical School, ambos em Boston (EUA). No Brasil entidades médicas vem se posicionando contra o uso das substâncias, em função da falta de evidências científicas que comprovem a sua eficácia (ler no fina da matéria).
O documento diz que “não foi possível confirmar benefícios da hidroxicloroquina ou cloroquina, quando utilizados isoladamente ou com um macrólido (antibióticos de amplo espectro), nos resultados hospitalares estudados. Os medicamentos foram associados à diminuição da sobrevida hospitalar e a um aumento da frequência de arritmias quando usado no tratamento do COVID-19.
É importante ressaltar que o artigo não é um teste específico do uso dos dois medicamentos, mas se trata da maior avaliação já feita sobre os resultados de suas aplicações em ambientes no mundo real (ambiente hospitalar). Apesar de apenas observacional, o tamanho e a amplitude do estudo trazem um impacto significativo, segundo avalia o diretor do Centro Médico da Vanderbilt University, de Nashville (EUA), David Aronoff. “Isso realmente nos dá um a grau de confiança de que é improvável que vejamos maiores benefícios desses medicamentos no tratamento da covid-19”, afirmou.
Estudo
O estudo foi elaborado a partir da observação de dados de 14.888 doentes hospitalizados com covid-19 (infeção respiratória viral) que foram tratados com um ou ambos os medicamentos, combinados ou não com a administração dos antibióticos azitromicina e claritromicina, utilizados no tratamento de infeções pulmonares bacterianas.
Os dados foram comparados com os de 81.144 pacientes com covid-19 que foram igualmente hospitalizados, mas que não receberam tratamento com estes medicamentos. Os pacientes estiveram internados em 671 hospitais em seis continentes, no período compreendido de 20 de dezembro de 2019 a 14 de abril de 2020. Até o dia 21 de abril, todos já haviam recebido alta hospitalar ou vieram a falecer. A amostra total contou com 96.032 pacientes (idade média 53,8 anos, 46,3% mulheres / 53,7% homens).
No primeiro grupo, dos 81.144 pacientes que não receberam tratamento com a cloroquina e a hidroxicloroquina, 1 em cada 11 morreu no hospital. Em contrapartida, em média, quase 1 em cada 6 doentes medicados com um dos antimaláricos morreu.
Segundo o estudo, mais de 1 em cada 5 doentes tratados com cloroquina e um antibiótico (azitromicina ou claritromicina) morreu e quase 1 em cada 4 doentes morreu quando medicado com hidroxicloroquina em combinação com um dos antibióticos.
O estudo concluiu, ainda, que 8% dos doentes medicados com hidroxicloroquina e um antibiótico (azitromicina ou claritromicina) desenvolveram arritmia (alteração no ritmo cardíaco), por comparação com 0,3% dos doentes do grupo de controlo (sem qualquer medicação antimalárica).
Ressalvas
Contudo, os autores advertem que não é possível inferir uma relação de causa e efeito entre o tratamento de doentes com covid-19 com medicamentos para a malária e o aparecimento de arritmias, uma vez que não foram avaliados outros fatores, e insistem para que se façam ensaios clínicos robustos.
Apesar dos dados, os autores do estudo ressalvam que poderá haver outros fatores, não avaliados, na origem da possível ligação entre o tratamento de doentes com covid-19 com medicamentos para a malária e uma diminuição da sua sobrevivência. Neste contexto, pedem para que sejam realizados com urgência ensaios clínicos aleatórios para aferir a eficácia e a segurança do uso destes fármacos como antivirais antes de serem administrados a doentes com covid-19.
“Ensaios clínicos aleatórios são essenciais para confirmar danos ou benefícios associados a estes agentes. Até lá, propomos que estes medicamentos não sejam usados como tratamentos para a covid-19 fora dos ensaios clínicos”, afirmou Mandeep R. Mehra.
Considerações da comunidade científica
“A principal conclusão deste estudo é que nem a terapia única nem a combinada com cloroquina ou hidroxicloroquina parecem fornecer qualquer benefício ao paciente nesta análise de um número grande de pacientes infectados com SARS-COV2. Além disso, e de maneira preocupante, essa terapia pode realmente ser prejudicial, pois o tratamento foi associado a problemas cardiovasculares relacionados ao ritmo cardíaco. Isso parece pior para combinações de medicamentos, mas é preocupante em todas as condições”, disse Stephen Griffin, professor da School of Medicine da Universidade de Leeds (Inglaterra).
Já Stephen Evans, professor farmacoepidemiologia da London School of Hygiene and Tropical Medicine, de Londres (Inlgaterra), destaca que “todos esses medicamentos foram sugeridos como eficazes para o tratamento do Covid-19, mas as evidências sugerem que é muito fraca a sua indicação de uso, e ainda, nenhum estudo randomizado conseguiu demonstrar esse benefício, embora existam estudos em andamento que darão respostas em breve. Este estudo, além do pequeno viés citado acima, é um dos melhores, tanto em tamanho quanto em sua conduta geral, para avaliar o benefício ou dano potencial da hidroxicloroquina ou cloroquina combinada ou não com antibióticos de amplo espectro. Por outro lado, existem algumas questões que poderiam ser levantadas sobre o estudo; não está claro se os principais resultados se baseiam na correspondência do escore de propensão ou no ajuste covariável. E ainda, não está claro se foram feitos ajustes pelo menos para o continente, se não para hospital ou país. A contribuição dos antivirais para os efeitos sobre a mortalidade não parece ter sido relatada, embora pareça ter sido levada em consideração. Eles podem ou não ter benefícios na mortalidade, mas não parecem afetar o risco de arritmia.”
Brasil
No Brasil, o governo liberou o uso em todas as fases da doença, desde que com o consentimento do paciente. Na quarta-feira (20), o Ministério da Saúde incluiu a cloroquina, e seu derivado hidroxicloroquina, no protocolo de tratamento para pacientes com sintomas leves de covid-19. De acordo com o documento divulgado pela pasta, cabe ao médico a decisão sobre prescrever ou não a substância, sendo necessária também a vontade declarada do paciente, com a assinatura do Termo de Ciência e Consentimento.
O governo alerta que, apesar de serem medicações utilizadas em diversos protocolos e de terem atividade in vitro demonstrada contra o coronavírus, ainda não há resultados de “ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o beneficio inequívoco dessas medicações para o tratamento da covid-19”.
Conselho Federal de Medicina
Já o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou o Parecer nº 04/2020 no qual estabelece critérios e condições para a prescrição de cloroquina e de hidroxicloroquina em pacientes com diagnóstico confirmado de COVID-19.
Após analisar extensa literatura científica, a autarquia reforçou seu entendimento de que não há evidências sólidas de que essas drogas tenham efeito confirmado na prevenção e tratamento dessa doença. Porém, diante da excepcionalidade da situação e durante o período declarado da pandemia de COVID-19, o CFM entende ser possível a prescrição desses medicamentos em três situações específicas.
A primeira situação em que o CFM autorizou que médicos ministrem a droga, mediante autorização dos parentes, é nos chamados “casos compassivos”, quando o doente está em estado crítico, em terapia intensiva e já está fora de possibilidade terapêutica.
Outro caso em que a droga pode ser usada pelo médico com autorização do paciente e de familiares é quando o infectado chega com sintomas ao hospital, em momento de replicação viral.
A terceira situação é quando o paciente tem sintomas leves, parecidos com o da gripe comum, desde que o médico tenha descartado se tratar de uma gripe normal, dengue, ou H1N1 e que a decisão seja compartilhada com o paciente.
Em todas as situações, o princípio que deve, obrigatoriamente, nortear o tratamento do paciente é o da autonomia do médico, assim como a valorização da relação médico-paciente, “sendo esta a mais próxima possível, com o objetivo de oferecer ao paciente o melhor tratamento médico disponível no momento”.
Sociedades Médicas
As entidades científicas Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB), a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) emitiram no dia 18 parecer com diretrizes para o tratamento da Covid-19. No documento, as três entidades não recomendaram – ao menos neste momento – o uso de rotina da cloroquina e da hidroxicloroquina. O apoio técnico é dos hospitais Moinhos de Vento, Alemão Oswaldo Cruz e Sírio-Libanês.
A SBI defende que é precoce a recomendação de uso e que é preciso aguardar por mais estudos (ver no final da matéria). Segundo nota da SBI, ambos os fármacos (cloroquina e hidroxicloroquina) têm descrição de efeitos adversos como retinopatias, hipoglicemia grave, prolongamento QT (que se relaciona com alteração da frequência cardíaca, com batimentos cardíacos acelerados) e toxidade cardíaca, sendo exigido contínuo monitoramento médico dos indivíduos em uso da cloroquina ou hidroxicloroquina.
Os estudos foram feitos em pacientes hospitalizados e, portanto, não há base para o consumo da droga por pacientes ambulatoriais: “Seu uso preferencial deve ser realizado mediante protocolos de pesquisa clínica”, dizem os pesquisadores. Já a AMIB emitiu nota com 11 recomendações (confira aqui).
A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), em nota divulgada na quinta-feira (21), não recomenda o uso da cloroquina e hidroxicloroquina associada, ou não, a azitromicina, enquanto não houver evidências científicas definitivas acerca do seu emprego.” No entanto, para os pacientes que optarem pela realização do tratamento, orienta que, desde que resguardada as condições sanitárias necessárias para minimizar o risco de contágio de profissionais de saúde e outros pacientes, que sejam realizados eletrocardiogramas a fim de avaliar a evolução do intervalo QT, de forma a subsidiar o médico quanto a pertinência de se persistir no tratamento. Para tanto, a Telemedicina pode ser uma alternativa viável para suportar essa iniciativa. Por fim, a SBC, com base em seus propósitos sociais estará sempre a disposição para contribuir com as autoridades sanitárias do país na adoção de políticas públicas de interesse da sociedade brasileira”, completa a nota.