Estatísticas e Análises, Mundo, Política | 30 de dezembro de 2016

Políticas ruins fazem tão mal quanto a medicina de má qualidade

Medidas bem-intencionadas, mas impróprias ou inadequadas, podem afetar milhões de pessoas
Políticas ruins fazem tão mal quanto a medicina de má qualidade

Uma nova pesquisa apresentada em sessão científica na American Heart Association (AHA) e publicada no periódico Journal of the American College of Cardiology: Heart Failure, analisou o risco de “reinternação após 30 dias” em casos de insuficiência cardíaca. Os resultados apresentam indícios de que algumas bem-intencionadas medidas com foco na qualidade podem, na verdade, piorar a situação.

Como avalia sobre o tema um artigo do portal especializado Medscape, tratar dos pacientes com insuficiência cardíaca já é uma tarefa difícil, e os responsáveis pela elaboração das políticas de saúde deveriam parar de dificultar ainda mais. O tema tem foco no mercado norte-americano, onde os hospitais e médicos recebem punições (como pagamento menor pelo serviço prestado) quando o paciente retorna ao atendimento no prazo de 30 dias após sua alta no estabelecimento. Utilizar esta métrica nem sempre é garantia de qualidade, já que cada paciente tem seu próprio background (histórico de saúde), e questões importantes como comorbidades associadas à doença podem acabar tendo papel secundário, quando na verdade deveriam ter relevância para o desenvolvimento e mensuração das políticas de incentivo à qualidade assistencial.

“A ideia de que a redução da reinternação hospitalar em 30 dias nos casos de insuficiência cardíaca pudesse significar bom atendimento médico fazia sentido. Na prática da medicina, entretanto, nem sempre as ideias que fazem sentido são, de fato, boas ideias. Basta ver a terapia de reposição hormonal para mulheres após a menopausa e o tratamento das extra-sístoles ventriculares (um tipo de arritmia cardíaca) com antiarrítmicos após infarto do miocárdio”, menciona a publicação.

Um grupo de pesquisadores norte-americanos usou dados do guia da AHA, o Get the Guidelines-Heart Failure para mensurar o valor de reduzir os índices de “reinternação em 30 dias” nos casos de insuficiência cardíaca. “Os pesquisadores separaram dois grupos de hospitais:

Aqueles com mais readmissões do que o esperado, e

Aqueles com índices normais de readmissões.

Foram avaliadas 171 instituições com mais de 43 mil pacientes. Os resultados estudados focaram na adesão às medidas de desempenho durante a internação e os desfechos clínicos em um ano”. Os resultados mostraram que:

Não foram observadas diferenças entre os grupos de altos ou baixos índices de reinternação em 30 dias nos casos de insuficiência cardíaca nos índices de adesão a todas as medidas de desempenho (95,7% vs. 96,5%, P = 0,37) ou no percentual de atendimentos sem falhas (90,0% vs. 91,1 %; P = 0,47).

O desfecho composto de morte por qualquer causa ou reinternação em um ano não teve diferença entre os dois grupos: 62,9% nos hospitais com índices normais de reinternação vs. 65,3% nos hospitais com altos índices de reinternação (P = 0,10).

Nas reinternações por todas as causas, os hospitais com baixos índices de reinternação por insuficiência cardíaca em 30 dias superaram em 4% (P = 0,01) os hospitais com altos índices de reinternação.

Os pesquisadores observaram forte tendência (P = 0,07) de maior mortalidade nos hospitais com menos reinternação. (Leia novamente este resultado).

Os autores concluíram que estas descobertas levantam questões sobre a validade do uso da readmissão como meio de identificar e penalizar os hospitais.

A readmissão como parâmetro

Os autores concluíram que estas descobertas levantam questões sobre a validade do uso da readmissão como meio de identificar e penalizar os hospitais.

O artigo salienta que a semelhança entre o desempenho dos dois grupos de hospitais não é uma surpresa. “Medidas de desempenho como o uso de inibidores da enzima convertase/bloqueadores dos receptores II da angiotensina e beta-bloqueadores são fáceis de adotar. Pode-se ensinar e reforçar listas de verificação e protocolos”. A principal conclusão do estudo foi a ausência de benefício — e possíveis danos — nos resultados clínicos dos hospitais com baixos índices de reinternação de casos de insuficiência cardíaca em 30 dias.

“A reversão desta política deveria ter sido esperada. Estudos anteriores mostraram não haver sinais de benefícios da redução da readmissão dos casos de insuficiência cardíaca em 30 dias. Seria possível argumentar, então, que este estudo mais recente confirmou estudos anteriores – o que reforça a nossa confiança nos resultados”.

Nos EUA, os Centers for Medicare and Medicaid Services usaram índices de readmissão em 30 dias como referência de desempenho do hospital. No primeiro ano de vigência da medida, com cunho de penalização, foram aplicadas sanções financeiras a 64% dos hospitais, o equivalente a US$ 290 milhões em multas. “Quem trabalha em hospital conhece o resultado das sanções: os gestores vão furiosamente despender tempo, energia mental e dinheiro a fim de reduzir as reinternações em curto prazo. Podem até criar um comitê para esta finalidade ou contratar um coordenador”.

As sanções e a divulgação pública de relatórios de dados parecem sufocar a avaliação crítica em relação a estratégias políticas, o que pode ser perigoso. “Políticas bem-intencionadas, porém, de má qualidade, podem afetar milhões de pessoas. Por exemplo, eu não sou especialista em doenças infecciosas, mas suspeito que a medida de qualidade de tempo de antibioticoterapia para os casos de pneumonia fez pouco para melhorar o nosso problema de resistência aos antimicrobianos”, diz o artigo assinado pelo cardiologista John Mandrola, do Louisville Cardiology Group.

No Journal of the American College of Cardiology: Heart Failure, os autores explicam o fracasso da reinternação em até 30 dias nos casos de insuficiência cardíaca como marcador secundário de qualidade, observando fatores relacionados ao “nível do hospital”, como a proporção de pacientes vulneráveis atendidos, o status socioeconômico da comunidade que frequenta o hospital e “fatores relacionados ao nível do paciente”, como histórico de doença mental, e apoio social e domiciliar.

A avaliação informatizada da medicação orientada por diretrizes funciona bem para o homem de 55 anos de idade com miocardiopatia isolada, hipertensão arterial e amplo sistema de apoio familiar. Mas é quase certo que essa mesma avaliação informatizada dos medicamentos vai fazer mal no caso de uma idosa com insuficiência cardíaca e doença de Parkinson, com sarcopenia, doença renal crônica, sem transporte para o ambulatório e sem celular. Esta paciente se sairia muito melhor com menos coisas do tipo “medida de qualidade” ou “orientado por diretrizes”, explica o artigo.

Outro problema decorrente das políticas de má qualidade é que ela agrava um grande problema de segurança do paciente: a distração. “Se as pessoas do hospital estiverem concentradas na questão da reinternação, não estarão prestando atenção a outras coisas importantes — como o alívio dos sintomas, por exemplo”.

Os pesquisadores acreditam que é necessário “ampliar o foco da avaliação da qualidade do hospital e dos programas de aperfeiçoamento dos índices de readmissão em curto prazo para medidas mais abrangentes de qualidade do atendimento e dos desfechos clínicos”. Dr. John Mandrola considera que “a melhor maneira dos profissionais que traçam as políticas de saúde melhorarem as questões sociais é permitir que os hospitais tratem os doentes e deixar os saudáveis em paz. Em segundo lugar, as evidências deveriam nortear as políticas de saúde, tanto quanto o fazem no tratamento à beira do leito. Por fim, os médicos precisam ter poder de veto sobre as decisões burocráticas”.

O dinheiro economizado, segundo ele, poderia ser redirecionado para as questões sociais: parques, bairros onde seja possível caminhar com segurança, boas escolas e lojas para comprar comida de qualidade. “Diminuindo a demanda dos hospitais, nossas políticas de saúde poderiam se concentrar na promoção de mais saúde”, conclui o articulista.

 

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