Gestão e Qualidade | 5 de agosto de 2024

Exame enrugado pela água

Em artigo, o oncologista e pesquisador da Oncoclínicas&Co Stephen Stefani fala sobre a importância da capacidade de reconstrução do ser humano.
Artigo Exame enrugado pela água

Abro o envelope do exame, enrugado pela água que não poupou nem quem já vinha doente. Este senhor de 75 anos de idade foi acordado pelas águas. O olhar apreensivo e esfregar das mãos pareciam ainda estar revivendo um filme tenso e agitado. Os acontecimentos catastróficos atingiram pessoas de todas as idades, todas as classes sociais e todas as sortes. A água invadiu a casa, sem piedade, com uma rapidez que somente permitiu que ele resgatasse seus documentos e seus exames.

“Podia ser pior”. É uma frase recorrente entre as vítimas da enchente. Mas não foi uma comparação com quem teve menos sorte. Era uma referência ao seu próprio limite de desempenho que poderia estar comprometido pela enfermidade. Não era justo querer imaginar alguém pior para ancorar um referencial de infortúnio ainda mais triste. A busca do consolo amparado na comparação com a desgraça alheia pode até ter uma função cicatrizante, mas parte do pressupor que alguém tem que estar sofrendo mais. Acreditar na própria capacidade de reconstrução é mais difícil, mas ao mesmo tempo tira uma fronteira na possibilidade de achar energia e força de restabelecer felicidade em qualquer cenário. Nem que todo o entorno seja de lama.


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Leio o laudo do exame, tendo que me concentrar em não deixar o pensamento divagar na direção de imaginar o porquê de uma pessoa doente ainda tem que enfrentar mais uma adversidade do porte de perder tudo que tem – ou melhor, quase tudo: ainda tinha a dignidade representada pelos documentos que provavam quem era e ainda tinha os exames que atestariam se tinha saúde para reconstruir sua vida.

“Sem evidências de doenças”, resumia o laudo. Reli em voz alta.

O paciente, com olhos marejados de emoção, sorri pela primeira vez.

“Sou uma pessoa de muita sorte, doutor! Obrigado! Posso ligar para meu filho para contar? Ele está precisando de uma boa notícia.”


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Esse sorriso que brota com força, no meio desse lamaçal de desgraças, representa como a felicidade sempre pode achar sua forma de recomeçar, mesmo quando tudo parece conspirar para a tristeza. E que esse nosso povo encontre este sorriso e, ainda melhor, possa compartilhar com alguém que ama. O ser humano é capaz de reconstruir qualquer coisa se tiver esse tipo de motivação. Estas pessoas que reencontram suas trilhas – com seus exemplos de valores e coragem – são o melhor parâmetro que sustenta a esperança que voltaremos a sorrir. 


Stephen Stefani, médico oncologista e pesquisador da Oncoclínicas&Co


 

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