Jurídico | 20 de fevereiro de 2017

Condenações judiciais constituem preocupação de hospitais, clínicas e laboratórios 

Advogado Sílvio Guidi defende que hospitais saibam identificar os pacientes com “risco jurídico”
Condenações  judiciais na saúde constituem preocupações de hospitais, clínicas e laboratórios

Segundo o Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos últimos dez anos o país teve um aumento de 1.600% no número de processos judiciais envolvendo médicos e pacientes. Porém, o aumento exacerbado dessas demandas nem sempre tem como base um motivo justo. Por isso, a relação com pacientes e familiares é o fator mais importante na atuação jurídico-preventiva do risco jurídico, que é aquele risco de sofrer ações ou condenações judiciais. O portal de notícias Setor Saúde, da Fehosul, conversou com o advogado Sílvio Guidi (foto), para esclarecer dúvidas sobre o assunto.

O advogado é especialista em ética médica e coordenador do Boletim ONA Legal, da Organização Nacional de Acreditação (ONA), entidade não governamental e sem fins lucrativos que certifica a qualidade de serviços de saúde, com foco na segurança do paciente.

Quais são as principais causas do aumento do número de processos judiciais envolvendo médicos, pacientes e estabelecimentos de saúde?

Sílvio Guidi: Existem algumas causas sintomáticas, a primeira delas pode ser notada ao ver os jornais. Se você prestar atenção nos grandes jornais, pelo menos uma vez ao dia, existe uma matéria falando sobre erro médico, um jargão que foi inventado na sociedade para falar sobre esse tipo de tema. O fato de esse tema estar sempre muito quente na mídia faz com que as pessoas que leem ou veem pela televisão sejam instigadas a, quando se depararem com certos tratamentos, mover ações judiciais.

Um ponto que eu também acho muito relevante é o número crescente de advogados no país. Isso significa maior acesso da população a esse tipo de serviço. Por exemplo: antigamente, alguém que vive longe do centro teria mais dificuldade de acessar um advogado. Teria que pegar um veículo e ir até o centro da cidade buscar e até mesmo pagar um honorário de advocacia antes mesmo de entrar com processo. Com esse número crescente, é mais fácil alguém ter um advogado na família ou um amigo. Os próprios honorários mudaram. O pagamento ocorre através dos honorários de sucesso. Se o advogado ganhar a causa, ele ganhará um percentual daquele processo. E se ele não vencer a ação, não cobra nada. Ficou mais barato para as pessoas entrarem com esse tipo de ação. Outros pontos também me parecem interessantes, como o fato da medicina ser a única profissão que existe associação de vítimas. Você não encontra associações de advogados, por exemplo. Mas você encontra pelo menos uma associação de vítimas de médicos por estado.

Como podemos mudar isso, é uma ação que deve vir do paciente, do médico ou dos hospitais?

Sílvio Guidi: Eu acho que os hospitais e os profissionais médicos podem mudar isso. O que acontece hoje é que há uma falha na visão e importância da relação entre médicos e pacientes. Hoje, há uma dinâmica de atenção ao consumidor que tem sido tratado na maioria dos serviços, mas isso não é transferido quando se fala sobre serviços médicos hospitalares. Isso não significa que todas as vontades do paciente devem ser feitas. Não é bem isso que é a sugestão. O que eu sugiro é o seguinte: no primeiro momento eu acho importante o hospital e seus profissionais cogitarem quais são os pacientes que são o risco jurídico. Porque, imagine, o paciente ingressa na instituição com uma doença curável, a chance de esse paciente entrar com uma ação é muito pequena. Enquanto você tem situações que o tratamento pode ocorrer o óbito ou a perda de um órgão, em situações de risco. O risco do paciente ou seus familiares entrarem com processo jurídico começa a aumentar.

O hospital precisa estar atento a isso e mostrar mais energia. É preciso mostrar ao paciente que aquilo que aconteceu não foi necessariamente um erro médico. Pode ter acontecido devido a sua condição ou de fatores que escapam ao controle do hospital.  Ouvidorias no hospital diminuem a tensão. Mostrar ao paciente de que aquilo que aconteceu, ainda que tenha sido um erro, acontece no dia-a-dia.

Claro, que também tem o outro lado. A partir do momento da existência de um paciente com um risco jurídico, você se acautela de alguma forma. Fazendo uma verificação no prontuário desse paciente para ver se está bem preenchido. Levantar testemunhos. Por exemplo, com um paciente acamado queda de leito ocorre muito em ações judiciais.  De repente, o paciente recebeu todas as informações para que não se mexesse e a queda de leito se deu por conta de uma imprudência dele e não por uma má gestão do hospital. Por isso é importante coletar testemunho das enfermeiras, dos técnicos de enfermagem que estavam lá no momento para explicar que era importante ele chamar a enfermeira e não levantar sozinho.

O que acontece é o seguinte: se você não tem como evitar a ação judicial, você tem que estar preparado para a representação contra o processo. Você deve ter um bom prontuário e recolher o testemunho dessas enfermeiras antes mesmo do ingresso da ação. Caso o paciente resolva entrar com a ação, você já tem tudo preparado para entregar ao advogado do hospital. Não precisa ficar procurando documentos e perder tempo. E é importante não perder esse prontuário, que é mais comum do que a gente imagina, um número grande de ações são perdidas porque os hospitais perdem o prontuário. Nesse caso, a condenação não vem por um erro no tratamento ao paciente, mas porque o hospital não soube se preparar para uma ação judicial que venceria se tivesse os documentos a sua disposição.

Como o paciente pode saber em qual momento ele deve entrar com um processo judicial contra um médico ou hospital? Quando não se deve?

Sílvio Guidi: Tomar a decisão de entrar com uma ação judicial é algo muito pessoal, porque o paciente ou sua família, vão reviver a dor e o sofrimento que eles tiveram naquela situação. Essa escolha é muito singular, vão ter pessoas que vão encarar isso com muita naturalidade e outras vão ter muitas dificuldades por optar em entrar com uma ação. O ponto crucial é o seguinte: a ação vai investigar se o profissional atendeu o paciente de todas as formas possíveis, se atendeu a tudo que estava ao seu alcance na ciência.

Investigar isso é complicado. As vezes tudo aquilo que está ao alcance do hospital não é suficiente para resolver o problema do paciente. As vezes ele vem a óbito ou não consegue se curar de uma doença. É difícil chegar ao paciente e dizer: nós fizemos tudo que podíamos, mas lamentavelmente a sua condição não permite uma melhora significativa ou nem mesmo uma melhora. Mas como o paciente vai ter certeza disso? É uma situação complicada.

Acho que alguns pontos são interessantes para o paciente sentir se tem algo de errado. Primeiro, o comportamento evasivo de uma instituição pode indicar que realmente foi um erro. Por exemplo, o paciente vai tentar buscar informações com o hospital ou com o profissional que o atendeu e ele não consegue. Existe burocracia ou simplesmente não consegue falar com os profissionais que o atenderam. Quando a instituição começa a bloquear o acesso a informações para o paciente é um sinal muito claro que eles estão tentando esconder alguma coisa. Outra situação: quando os profissionais, em um procedimento eletivo dizem depois para um paciente que aquilo que ocorreu com ele era previsível, mas não o informaram antes disso. Significa que você está cometendo um erro, pois deveria ter informado o paciente para que ele pudesse decidir se ele queria ou não queria correr aquele tipo de risco. Quando o hospital não abre as portas para discutir o resultado negativo com o paciente é um sinal de que aconteceu algo errado. Claro, que não tem como dizer com certeza, às vezes o hospital está apenas mal preparado para atender o paciente.

E ao contrário, quando que um hospital ou um médico deve entrar com um processo judicial contra um paciente?

Sílvio Guidi: Existem algumas situações que são muito corriqueiras no mundo atual. Elas podem ocorrer quando o paciente se mostra insatisfeito com o tratamento, mesmo ele tendo sido informado que havia um risco e decidiu se submeter a cirurgia. O resultado pode não ser o esperado e por isso ele começa a fazer postagens em mídias sociais falando mal do médico ou do hospital. Eu acho que esse é um caso clássico onde o hospital disponibilizou um serviço dentro de uma margem aceitável e ainda assim o paciente se vê insatisfeito com algo que não é responsabilidade da instituição. O hospital pode entrar com um processo judicial contra esse paciente para que ele pare com esse tipo de postura de denegrir a imagem do hospital e os profissionais possam ser ressarcidos por essa injúria que não tem nenhuma procedência.

Quando um erro médico pode ser resolvido judicialmente? Quando não pode?

Sílvio Guidi: Raramente o erro médico não poderá ser resolvido na justiça. Nós temos uma realidade em que qualquer reclamação, por mais absurda que seja, pode ser levada ao judiciário. Mesmo que eu não tenha nenhuma relação com um hospital, posso escrever uma série de mentiras e a justiça vai receber essa ação e vai tramitar. Óbvio que a chance de sucesso dela é muito pequena. É difícil de dizer que tipo de erro médico pode ou não ser discutido na justiça, todos podem.

A justiça vai se valer de peritos médicos, em sua grande maioria, que vão analisar o caso para saber se houve alguma atitude incorreta em relação ao paciente. Alguns casos talvez sejam melhor tratados no conselho regional de medicina do que propriamente no judiciário. Não que o judiciário não possa enfrentar esse tipo de questão, mas a meu ver o conselho regional de medicina tem mais habilidade para lidar com algumas questões que se caracterizam como posturas antiéticas. Um exemplo sobre isso: o paciente vai fazer uma cirurgia eletiva, que havia um risco. Submeteu-se a cirurgia e deu tudo certo. No final, ele descobre que havia um risco naquela cirurgia e ele pensa: poxa, meu médico não me falou sobre isso.

Qual o prejuízo para esse paciente? Para sua saúde ou condição financeira: nenhum. Mas ele sofreu um risco que gostaria de lidar melhor. Como nada foi afetado, ele não tem o que pedir à justiça. A instituição cometeu um erro ético porque poderia ter avisado. Mas, em último caso, poderia informar ao paciente, após a cirurgia, que avisá-lo poderia agravar o quadro clínico dele. Se ele sabe do risco, a pressão pode subir demais e um tratamento sem muito risco acaba ficando mais difícil. Quando acontece algo que não é de conduta ética, mas que não traz nenhum problema para o paciente o conselho regional de medicina é o local mais adequado para esse tipo de discussão.

Quais os processos judiciais mais comuns em relação a saúde?

Sílvio Guidi: Toda vez que a gente tem uma tentativa frustrada, a chance de um processo judicial é maior. Um paciente cardíaco ou que sofreu um AVC já entra no hospital mal [de saúde], se ele conseguir uma recuperação está no ´lucro´, mas se não conseguir a família vai se conformar, até porque foi algo que aconteceu fora do ambiente hospitalar. Temos algumas situações complicadas, principalmente com os obstetras, porque a família entra no hospital para um momento de felicidade, talvez o maior momento de felicidade daquela família que é o nascimento de um filho. E, de repente, isso se torna um desastre. A criança morre por complicações, sejam elas da própria gestante ou de um erro na atenção ao paciente. Causaram na criança um sofrimento. Esse tipo de impacto na expectativa é muito grande. Ações estéticas também. A pessoa espera sair linda e maravilhosa, mas acaba se frustrando com alguma cicatriz ou a cirurgia acaba não sendo um sucesso. A pessoa também pode entrar para tirar uma mancha ou uma verruga e acaba morrendo em um processo anestésico ou em um processo inesperado. É imprevisível para a pessoa. Quando há uma situação muito impactante para o paciente ou família a frustração é maior. A atividade campeã em processos é a obstetrícia. Em segundo lugar, ´colado´, a cirurgia estética. Especialmente porque nessas atividades, quando algo sai errado, a frustração é muito grande.

Conte um pouco sobre o processo judicial que mais lhe chamou atenção?

Sílvio Guidi: Tem um caso muito emblemático, eu acho que ele é o símbolo daquilo que uma instituição não deve fazer porque ela foi responsabilizada por um erro muito banal, que poderia evitar com muita tranquilidade. O paciente, portador de HIV, estava no hospital para fazer seu tratamento, só que ele não havia contado isso para sua família. Eles não sabiam que ele era portador do vírus e ele tinha todo o direito de se preservar. Ele estava no hospital esperando para realizar o tratamento e chegou uma equipe de reportagem da televisão local para realizar uma matéria naquela ala do hospital. O hospital não tomou o cuidado e permitiu que a imagem daquele paciente fosse registrada e ela foi passada no jornal local e a família descobriu, por esse meio, que ele era portador do vírus HIV. O paciente entrou com um processo e conseguiu uma indenização alta, de 300 mil reais, por descuido do hospital. Que deveria ter falado com os pacientes e selecionado quem que estava disposto a aparecer ou falar com a equipe de reportagem para borrar as pessoas de fundo e não mostrar sua identidade.

DIMINUIÇÃO DO RISCO JURÍDICO

O Dr. Sílvio Guidi, defende ainda que, atualmente, os prestadores de serviços de saúde não devem mais se preocupar com processos judiciais de forma isolada. “Esse pensamento é contraproducente”, afirma o especialista. A preocupação atual diz respeito à gestão do risco jurídico. Importa menos o resultado de uma ação judicial e muito mais o desenvolvimento de ferramentas para evitar outras ações e, por consequência, condenações.

O especialista pontuou também outros fatores determinantes para diminuição do risco jurídico:

Ter uma ouvidoria capaz de evitar ou antecipar grandes conflitos judiciais;

Ter comissões de óbito e de revisão de prontuários efetivamente operantes – o que significa capacidade de diagnosticar possíveis erros na atenção que podem se transformar numa futura ação judicial;

Criar procedimentos de colheita de consentimento – não se contentando com mera assinatura de documentos;

Criar regras específicas para identificação de pacientes considerados como de alto risco jurídico, como nos casos de óbito inesperado, fuga de paciente, alta a pedido e alta administrativa.

 

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