Empregabilidade e Aperfeiçoamento, Gestão e Qualidade | 18 de agosto de 2014

A causa das falhas e incidentes assistenciais é sistêmica, afirmam especialistas

Programa Nacional de Segurança do Paciente em Hospitais e Clínicas Especializadas foi tema de evento promovido pela Fehosul
Cassiana Prates_Quinto

Lidar com a inevitabilidade das falhas e saber como evitá-las ao máximo. Esse foi o caminho proposto pelos especialistas em gerenciamento de riscos assistenciais Antonio Quinto Neto e Cassiana Prates, no seminário promovido pela FEHOSUL que abordou a implantação do Programa Nacional de Segurança do Paciente em Hospitais e Clínicas Especializadas. Os especialistas foram os palestrantes da atividade que lotou o Salão Açores, no Hotel Continental, no dia 15 de agosto.

Antonio Quinto Neto (médico, mestre em administração e especialista em avaliação de serviços de saúde) e Cassiana Prates (enfermeira, mestre em ciências médicas e coordenadora do Serviço de Epidemiologia e Gerenciamento de Risco do Hospital Ernesto Dornelles) apresentaram conceitos, estratégias e técnicas para facilitar a implantação e o melhor gerenciamento de ações relacionadas ao programa de segurança do paciente, tendo como base a RDC – 36 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Ao falar do documento símbolo Errar é Humano: Construindo um Sistema de Saúde mais Seguro, um marco da segurança do paciente, Dr. Quinto salientou que pesquisas indicam que “entre 44 mil e 98 mil pacientes morrem, anualmente, por incidentes assistenciais nos EUA. Esse relatório trouxe o entendimento de que as falhas não são decorrentes só dos médicos, mas de enfermeiros, nutricionistas, técnicos de radiologia, etc.”. Os dados, segundo o especialista, geraram alarme. “A ideia de que o local onde eu busco cuidado pode me matar, por causa de uma falha, é assustadora para qualquer um”.

A partir desse relatório surgiram, nos EUA, novas formas de encarar e entender a questão. “A causa do incidente assistencial é o sistema ruim. A forma como as organizações estavam estruturadas, aumentava o risco. Era preciso reordena-las de outra forma e tornar a segurança uma prioridade nacional”, explicou Quinto. “Em 2003, a acreditadora Joint Commission passou a considerar um dos pontos de avaliação, no item Liderança, a segurança do paciente”, exemplificou o palestrante. A partir desses estudos, foram criadas cinco medidas: tornar a segurança parte do plano estratégico; iniciar a busca de riscos; parar de punir as pessoas por cometer erros; desenvolver práticas recomendadas de medicação segura; e desenvolver prescrição médica informatizada.

O cenário atual das instituições brasileiras é constituído por 6.690 hospitais, sendo 4.548 privados, 2.141 públicos, 98 universitários, além de milhares de clínicas e laboratórios. “Se considerarmos só as organizações acreditadas no País, não chegamos a 4% do total. Vejam como é longo o trabalho para implantar as ações de segurança”, refletiu Quinto. Sobre a incidência de casos, Dr. Quinto mostrou que, em 2010, houve 11 milhões de internações no Brasil. “Isso indica 79 mil óbitos no ano e mais de 1 milhão de ocorrências de incidentes assistenciais. São 216 óbitos por dia ou nove por hora”, alertou.

Em diversos momentos, os incidentes na área da saúde foram comparados aos aéreos. “Quando ocorre um acidente de avião, se torna público e as pessoas ficam consternadas. Isso leva um grupo a investigar o porquê do incidente, não se busca culpados, mas as causas. Na saúde é preciso fazer o mesmo raciocínio: entender as razões para aprender a diminuir o risco. Na aviação, o acontecimento é em bloco (muitas pessoas morrem ao mesmo tempo), mas na saúde é espaçado e não se agrega dados”, aduziu o palestrante.

De 2004 a 2013, de acordo com Quinto, a Joint Commission listou 7 mil incidentes, onde os principais fatores foram procedimentos em paciente errado e troca de paciente. “Isso ficava escondido e não se analisava cuidadosamente. Assim, não aprendemos as razões. O esforço é não julgar as pessoas, mas entender porque isso ocorre. Sabemos que 80% desses eventos decorrem de falha sistêmica e não individual”. É importante saber por que ocorreu o incidente sem apontar o médico, ou outro profissional, como culpado. “O enfoque de punir é inútil para aprender com as falhas e incidentes”, destacou.

O impacto financeiro dos acidentes assistenciais também é um fator determinante para a qualificação na segurança do paciente. “O Medicare (sistema de saúde para idosos dos EUA) decidiu não pagar casos de incidente assistencial, e fizeram uma lista com 12 eventos que, em tese, nunca deveriam ocorrer. Se acontece com seus beneficiários, é a instituição que deve resolver”, comentou o especialista.

Na avaliação da OMS, o uso do termo “erro médico” só é adequada quando a atuação do profissional puder, explicitamente, evitar o incidente. “Todo sistema tem falhas. Só ocorre o incidente quando existe uma sequência de falhas. Nenhum incidente grave ocorre apenas por um fato”.

Ao longo da explanação, os palestrantes reiteraram que a falha é parte da condição humana, mas isso não leva a um incidente necessariamente. É possível impedir, interceptar falhas que podem ocasionar problemas. “O profissional pode se enganar, violar um procedimento, e não acontecer nada. Mas se isso se associa a outras falhas, do paciente ou da instituição, aí teremos um incidente”.

Na visão “tradicional”, não causar dano é responsabilidade do profissional. No novo enfoque a segurança é uma prioridade. A informação, não apenas registrada, deve fluir para reduzir a chance de falhas e incidentes assistenciais. “O que importa é a transparência. Os profissionais são treinados para comunicar falhas e saber dizer isso para pacientes e familiares, junto com o conforto”.

Para a OMS, a definição de segurança do paciente consiste na ausência do dano previsível durante o processo de assistência à saúde. “Quem está na prática diária da assistência do paciente vai enfrentar essa situação em algum momento, em um grau maior ou menor”, disse Antônio Quinto Neto, encerrando a primeira etapa do seminário.

Como implantar o programa nacional

Ao apresentar uma série de objetivos que podem ajudar as instituições a se adequarem à nova realidade, a enfermeira especialista em riscos assistenciais, Cassiana Prates, ponderou que “é incontestável a importância do assunto e a necessidade de mudar esse cenário”, comentou. Cerca de 50% dos eventos podem ser evitados. “Temos a tendência de imaginar que a complicação é inerente ao procedimento, sem pensar que ele seria evitável. Isso coloca barreiras e falhas acontecem”. A análise precisa ir além dos eventos graves como uma amputação da perna errada ou uma queimadura. “As falhas que não acarretam em dano ao paciente também devem ser investigadas. Se incluirmos os ‘quase incidentes’, o dado é ainda maior, e é difícil enxergar esses eventos”, considerou.

Entre as medidas propostas está o checklist de procedimentos a ser conferido antes de um procedimento invasivo, seja um exame ou uma cirurgia, o que pode causar algum desconforto. “É importante a comunicação, ver se não falta nenhum material para a cirurgia. A New England (revista britânica especializada em saúde) validou o checklist com um estudo aplicado em oito centros hospitalares do mundo, de grande porte. O resultado foi a redução significativa na taxa de infecção cirúrgica, reoperação não programada, óbito e complicações”, destacou.

A enfermeira mostrou um conciso caminho para o sucesso da implantação do Programa Nacional, mas destacou que é preciso trabalhar de acordo com cada realidade. “Não há uma receita de bolo. Cada instituição deve adaptar a RDC – 36 à sua realidade, aos seus recursos. São culturas organizacionais únicas e temos que aprender a trabalhar nesse cenário”, destacou a especialista.

1) Apoio da alta direção. “A alta direção, os diretores e os gerentes precisar apoiar as ações de segurança. A implantação de um programa desse tipo não pode ser objetivo de uma única área. Sem compromisso da alta direção não funciona”.

2) Formalizar o núcleo. “Nomear as pessoas, organizar o grupo, é importante para que todos se sintam responsáveis para disseminar as ações que serão propostas. Esse núcleo deve ter livre acesso à direção”.

3) Paciência e perseverança. “Não se implanta nada porque há uma resolução (RDC 36). É uma mudança cultural e isso exige paciência, tempo e constância”.

4) Embasamento científico. “Os profissionais do núcleo precisam estudar muito; sem isso é provável que não convençam os demais profissionais. É com embasamento técnico (fatos e dados) que se conquista confiança”.

5) Sensibilização. “Envolver as pessoas no processo, dividindo a experiência. A alta direção deve assumir o papel de garantir a disseminação da cultura da segurança e das medidas que aumentar a segurança na assistência”.

6) Constituir equipes de trabalho. “É necessário constituir times. A coordenação do programa de segurança deve estimular a criação de equipes para a implantação dos protocolos”.

7) Estímulo à notificação e discussão. “Não adianta ter estrutura e organização. É preciso colocar as cartas na mesa. Se o diretor não quiser ouvir o que ocorre de ruim, não adianta implantar o programa”.

8) Ambiente acolhedor. “Um profissional só vai avisar que cometeu uma falha se souber que não será punido. Sem um ambiente acolhedor não conheceremos o que realmente acontece no hospital. Também é preciso saber acolher a família após um incidente assistencial. O paciente e a família têm que sentir, desde o início, que a equipe de saúde e o hospital estão preocupados com a sua segurança”.

9) Bom planejamento. “Muitos não gostam de parar para pensar, se reunir e escrever documentos, mas é preciso fazer isso. Planejar antes de implantar medidas evitará que se tenha que retroceder em ações que, muitas vezes, era melhor nem ter começado. Pensar as etapas é requisito para o sucesso”.

10) Comemorar o sucesso. “Lidamos muito com o lado ruim do sistema. Em outras situações temos que comemorar, com o paciente que se recuperou, o checklist que evitou um possível incidente, e disseminar essas informações”.

A importância da comunicação

Na segunda parte do evento, os mais de 50 participantes foram divididos em grupos, para uma atividade focada na comunicação e debate sobre os melhores procedimentos para lidar com diferentes situações. “A ideia foi estimular a conversa, a troca entre todos. Um elemento fundamental para a segurança do paciente é a comunicação entre os profissionais que usam técnicas semelhantes. O fato de ocorrer incidentes assistenciais e cada instituição esconder não contribui para o aprendizado sobre esses eventos. Se acontece um incidente grave, ninguém avisa para ninguém. A visão é de que, se outros souberem, a instituição fica mal falada”, explicou Quinto.

Ao abordar a chamada Cultura Justa, Antonio Quinto voltou a ressaltar que um dos maiores impedimentos para a prevenção de incidentes na indústria médica é a punição às pessoas que cometem falhas. Um dilema é orientar as pessoas para que comuniquem as falhas, sem o temor de uma punição, mas com total responsabilidade.

“Se não houver estrutura e cultura de relações de segurança, não adianta ter um profissional excepcional. Outro ponto é considerar que todos falham. Não devem ser punidos a priori, mas é importante saber que não estão livres da responsabilidade”.
Ao final do evento, Cassiana Prates frisou o papel fundamental de um código de conduta dentro das instituições. “Se alguém identifica uma situação que coloca em risco o paciente, pode comunicar para o comitê, que analisa a situação”.

“Tem muita razão e emoção envolvida nisso. O quanto isso interfere na conduta ou punição de alguém? Com um código de conduta bem definido e a cultura de segurança compartilhada na instituição, menor é a chance de se atrapalhar diante de um evento”, concluiu a palestrante.

Cassiana Prates é enfermeira, mestre em ciências médicas e coordenadora do Serviço de Epidemiologia e Gerenciamento de Risco do Hospital Ernesto Dornelles

Cassiana Prates é enfermeira, mestre em ciências médicas e coordenadora do Serviço de Epidemiologia e Gerenciamento de Risco do Hospital Ernesto Dornelles

Mais de 50 participantes no Hotel Continental

Participantes no Hotel Continental

Atividades práticas

Atividades práticas

Grupos se dividiram para exercitar o tema

Grupos se dividiram para exercitar o tema

Gestores, médicos, enfermeiros, farmacêuticos foram alguns dos profissionais que participaram

Gestores, médicos, enfermeiros e farmacêuticos entre os presentes

Antonio Quinto Neto

Antonio Quinto Neto

Antonio Quinto Neto é médico, mestre em administração e especialista em avaliação de serviços de saúde

Antonio Quinto Neto é médico, mestre em administração e especialista em avaliação de serviços de saúde

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