DNA tumoral circulante: a revolução silenciosa que está transformando o tratamento do câncer
Exames de sangue capazes de detectar fragmentos genéticos da doença na corrente sanguínea prometem antecipar decisões médicas e personalizar terapias antes mesmo que imagens mostrem progressão da doença.
Uma revolução está acontecendo na oncologia mundial. Não se trata de um novo medicamento milagroso ou de uma técnica cirúrgica inovadora, mas de algo aparentemente simples: a capacidade de “ouvir” o que o tumor está dizendo a través de fragmentos microscópicos de seu DNA que circulam no sangue do paciente.
O chamado DNA tumoral circulante (ctDNA) foi um dos temas que mais permeou os debates no Congresso Anual da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO) 2025, considerado o maior evento de oncologia do mundo. E os resultados apresentados indicam que estamos diante de uma mudança de paradigma: pela primeira vez, médicos vislumbram a possibilidade de tomar decisões terapêuticas baseadas exclusivamente em exames de sangue, antecipando-se à progressão visível da doença em meses.
“O ctDNA representa um dos avanços mais significativos da medicina de precisão dos últimos anos, prometendo transformar não apenas como tratamos o câncer, mas também como o monitoramos e prevenimos sua recorrência. Para pacientes e famílias, significa a possibilidade de um futuro em que o câncer pode ser controlado como uma doença crônica onde o tratamento pode ser modificado muito antes do paciente apresentar sintomas relacionados à progressão da doença”, destaca o oncologista Carlos Barrios, da Oncoclínicas&Co.
O que é o ctDNA e por que é revolucionário
Imagine que cada célula cancerosa seja como uma fábrica defeituosa. Quando essas células morrem naturalmente elas liberam fragmentos de seu DNA na corrente sanguínea. Esses fragmentos microscópicos carregam as “impressões digitais” genéticas do tumor – suas mutações características.
“O ctDNA é como um espião molecular que nos permite monitorar em tempo real o que está acontecendo com a doença, mesmo quando ela ainda é invisível aos exames de imagem convencionais”, explica Barrios. “É uma janela única onde enxergamos através da biologia tumoral de cada paciente.”
A tecnologia permite detectar mutações específicas que indicam resistência aos tratamentos atuais, presença de doença residual após cirurgias ou sinais precoces de recidiva – tudo isso através de uma simples coleta de sangue.
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Câncer de mama: antecipando a resistência
O estudo SERENA-6, apresentado na prestigiada sessão plenária da ASCO 2025, exemplifica perfeitamente o potencial transformador dessa tecnologia. A pesquisa envolveu pacientes com câncer de mama avançado hormônio-dependente, o subtipo mais comum da doença, que afeta principalmente mulheres após a menopausa, mas também pode atingir pacientes mais jovens.
Entre 30-50% das pacientes em tratamento desenvolvem uma mutação no gene ESR1, que torna o tumor resistente ao bloqueio hormonal convencional. Tradicionalmente, essa resistência só era detectada quando o câncer já havia progredido visivelmente nos exames de imagem.
No SERENA-6, mais de 3.000 pacientes foram monitoradas através de exames de ctDNA a cada 2-3 meses. Quando a mutação do ESR1 era detectada – mesmo sem sinais de progressão nos exames de imagem -, na metade das pacientes, o tratamento era imediatamente ajustado com a troca para uma medicação mais potente: o camizestranto.
Os resultados foram impressionantes: as pacientes que trocaram precocemente o tratamento ficaram 16 meses sem evolução da doença, contra apenas 9,2 meses no grupo que seguiu o protocolo padrão. Isso representa uma redução de 56% no risco de progressão ou morte.
“Para pacientes jovens, que muitas vezes ficam fora do rastreamento padrão e descobrem a doença em estágios mais avançados, essa tecnologia representa uma esperança real de controle mais eficaz e duradouro”, destaca Daniel Gimenes, também oncologista da Oncoclínicas.
Aplicações crescentes para outros tumores
A utilidade do ctDNA vai muito além do câncer de mama. No estudo NIAGARA, apresentado também na ASCO 2025, a tecnologia mostrou-se valiosa para pacientes com câncer de bexiga músculo-invasivo.
“A pesquisa demonstrou que 57% dos pacientes tinham ctDNA detectável no início do tratamento, caindo para 22% após a quimioterapia neoadjuvante e apenas 9% após a cirurgia. Mais importante: pacientes com ctDNA negativo após a cirurgia tiveram prognóstico significativamente melhor, permitindo identificar quem realmente se beneficia de tratamentos adicionais”, aponta Pamela Muniz, oncologista da Oncoclínicas.
No câncer colorretal, área onde o ctDNA já é mais estabelecido, a tecnologia tem se mostrado crucial para orientar tanto a intensificação quanto a redução de tratamentos adjuvantes, além de refinar estratégias de preservação de órgãos.
“Esta é uma ferramenta fundamental para personalizar o tratamento. Conseguimos identificar quais pacientes realmente precisam de quimioterapia adjuvante mais intensa após a cirurgia e, igualmente importante, quais podem ser poupados de tratamentos desnecessários. Além disso, em casos de câncer de reto, o ctDNA nos ajuda a refinar estratégias de preservação do órgão, evitando cirurgias mutiladoras quando possível. É uma mudança de paradigma: em vez de tratar todos os pacientes da mesma forma, podemos agora adaptar a intensidade do tratamento ao risco real de cada pessoa, baseado na biologia molecular do tumor”, diz Mauro Donadio, oncologista da Oncoclínicas.
Impacto para pacientes com diagnósticos iniciais e vigilância da recidiva
Uma das aplicações mais promissoras do ctDNA é no acompanhamento de pacientes após o tratamento inicial.
“Essas pacientes vivem com o medo de que a doença possa se manifestar novamente com uma recidiva. O ctDNA pode detectar sinais de retorno da doença meses antes de qualquer sintoma ou alteração em exames convencionais, permitindo intervenções precoces quando as chances de controle poderão ser maiores”, explica Barrios. Vários estudos em andamento exploram a possibilidade de que o ctDNA possa ajudar a detecção precoce de uma recidiva.
Desafios e perspectivas futuras
Apesar dos avanços promissores, ainda existem desafios. O custo dos exames de ctDNA permanece alto, e nem todos os tipos de tumor liberam DNA suficiente na circulação para detecção confiável. Além disso, é preciso mais tempo para entender o impacto real na sobrevida global dos pacientes.
“Estamos em um momento de transição. O ctDNA já não é mais experimental – está se tornando uma ferramenta clínica real. Nos próximos anos, veremos essa tecnologia se expandir para outros tipos de câncer e se tornar parte rotineira do cuidado oncológico”, afirma Gimenes.
Os estudos apresentados na ASCO 2025 reforçam que estamos entrando em uma nova era da oncologia: mais personalizada, anticipativa e focada não apenas em prolongar a vida, mas em preservar sua qualidade. “Para milhões de pacientes ao redor do mundo, isso significa tratamentos mais inteligentes, menos tóxicos e, principalmente, mais esperança”, finaliza Carlos Barrios.