Mundo, Tecnologia e Inovação | 2 de setembro de 2016

Nos EUA, hospitais testam a realidade virtual como aliada no tratamento

Novas tecnologias incentivam a adesão pelas instituições de saúde
Nos EUA, hospitais testam a realidade virtual como aliada no tratamento

A abordagem ainda é nova e experimental, mas defensores do uso da realidade virtual na saúde afirmam que ela pode ser um tratamento eficaz, das dores intensas e do mal de Alzheimer à aracnofobia e à depressão. É o que mostra uma reportagem da Bloomberg.

“Quando Deona Duke acordou de um coma induzido para começar a se recuperar de queimaduras que cobriam quase um terço de seu corpo, um dos tratamentos a que foi submetida foi o de arremessar bolas de neve em pinguins. A menina de 13 anos, era vítima de queimadura ocorrida quando, junto com uma amiga, foi atingida pela explosão de uma fogueira”. Para evitar infecções, os curativos das vítimas de queimaduras precisam ser trocados e a pele morta precisa ser raspada. Em alguns casos, nem a morfina consegue fazer com que essa dor seja tolerável.

No hospital infantil Shriners, em Galveston (EUA), os médicos de Deona lhe deram um headset (uma espécie de óculos) de realidade virtual. “Ao colocá-lo, ela foi rodeada pelo ‘SnowWorld’, uma paisagem congelada onde ela podia jogar neve em bonecos de neve e em iglus. O hospital, que fica no Texas, é um dos poucos a tentar usar a realidade virtual para aliviar a dor”.

“Eu nunca tinha ouvido falar disso, então me surpreendi um pouco”, admitiu a paciente. “Na primeira vez que tentei, me distraí e isso ajudou a aguentar a dor”. E, como empresas como Facebook, Sony e outras estão investindo e correndo para desenvolver o aparelho que dominará o mercado da realidade virtual, o preço do hardware (partes concretas de uma máquina, como disco rígido, a memória, entre outros itens de um equipamento eletrônico) vem caindo, tornando o equipamento uma opção mais acessível para instituições de saúde que procuram alternativas para aliviar a dor.

A ideia – que não é nova – é que a pior dor pode ser aliviada através da manipulação da forma como a mente humana funciona: quanto mais a pessoa se concentra na dor, pior ela se sente. Ocupar o cérebro com uma sobrecarga sensorial (como com a imersão em um mundo virtual) ilude a capacidade para processar a dor, de estar consciente dela, o que gera alívio.

“A dor é um alarme que nos indica o perigo e é muito eficiente para chamar a nossa atenção”, considera Beth Darnall, professora associada de clínica da divisão de Medicina da Dor do Stanford Health Care. Ela diz que a realidade virtual, utilizada em alguns estudos-piloto, é uma ferramenta psicológica, como a meditação, que pode “acalmar o sistema nervoso e limitar o processamento da dor”.

Em pesquisas realizadas pelos psicólogos Hunter Hoffman e Walter Meyer no hospital Shriners e em trabalhos semelhantes feitos por Dave Patterson no Centro de Queimaduras Harborview em Seattle, os pacientes informaram sentir menos desconforto. Hoffman examinou imagens por ressonância magnética do cérebro dos pacientes que demonstraram que eles realmente sentiram menos dor.

“No Cedars-Sinai, em Los Angeles, Ronald Yarbrough aguarda em uma sala, olhando para pista de aterrissagem do hospital na esperança de ver helicóptero chegar com um coração do doador. Ele precisa de um transplante após seu coração artificial falhar e está sendo mantido vivo por uma máquina. Ele tem experimentado um headset de realidade virtual (Samsung Gear VR, com preço em torno de R$ 650,00 no Brasil) e um software especialmente criado a partir de uma startup chamada AppliedVR, uma empresa focada em soluções para a área da saúde, criando a partir da realidade virtual, novas experiências para o paciente em hospitais, centros cirúrgicos e salas de exame. Isso ajudou Ronald Yarbrough a ocupar sua mente, amenizando o fato de que ele está confinado em um pequeno quarto de hospital que pode se parecer como uma cela de prisão. Quando os músculos estão relaxados, sua dor diminuiu, revelou o paciente”.

Um senhor de 54 anos, ex-motorista de caminhão, relatou que “estava usando muitos medicamentos para a dor e fui capaz de diminuí-los, porque eu não fico sentado pensando sobre isso [a dor]”. Ele pretende comprar um aparelho de realidade virtual quando receber alta. “Fiquei muito surpreso com isso. Eu não tinha a expectativa de que funcionasse. Quando eu experimentei, fiquei espantado”.

Os defensores da realidade virtual não demoraram em indicar que a tecnologia poderia oferecer uma grande vantagem em relação aos medicamentos, cujo uso prolongado pode levar à tolerância e, em alguns casos, à dependência. “Mas a eficácia da realidade virtual ainda precisa ser comprovada, particularmente na tentativa de combater a dor crônica. Será que o efeito dura depois de tirar o headset?”, questiona a reportagem da Bloomberg.

“Sabemos que as técnicas de relaxamento, como hipnose, ioga e meditação, reduzem a percepção da dor, então a realidade virtual promete muito, mas ainda é muito cedo para ela se tornar o tratamento padrão”, disse Houman Danesh, diretor de gestão da dor do hospital Mount Sinai em Nova York. “Esta tecnologia é muito recente”.

Há necessidade de pesquisas e levantamentos antes da realidade virtual ser amplamente aceita como um método de alívio da dor. “Brennan Spiegel, um gastroenterologista no Cedars-Sinai que também é diretor de pesquisa de serviços de saúde no hospital de Los Angeles, está prestes a começar um estudo com um grande número de pacientes. Até agora ele identificou uma série de reações. Os pacientes mais velhos tendem a ser menos abertos a isso do que os mais jovens. Um paciente terminal se recusou a sequer pensar na hipótese. Uma mulher, que sofria de dor abdominal, sentiu um alívio tão imediato que foi para casa e comprou um headset”.

“Como cientista, eu quero entender rigorosamente como algo parecido com a realidade virtual pode realmente melhorar os resultados de saúde em comparação com uma população de controle”, disse Spiegel, que admitiu que alguns resultados foram surpreendentes nos cerca de 150 pacientes analisados. “A realidade virtual, sem dúvida, tem um efeito sobre a mente humana”.

A realidade virtual e a dor

O potencial da realidade virtual para uso no tratamento da dor foi descoberto por acaso. “Tom Furness é um professor de engenharia industrial na Universidade de Washington e considerado o padrinho da realidade virtual pelos seus parceiros. Ele começou a olhar para isso há 50 anos, quando estava na Força Aérea e desenvolveu mais de 20 projetos de pesquisa em empresas. Um deles eram fones de ouvido que contavam com um sintonizador de TV e fitas de vídeo, que eram vendidos no mercado comum por 799 dólares. Foi um fracasso comercial por causa do conteúdo limitado, mas muitos dentistas compraram. “Os dentistas adoraram, porque seus pacientes não estavam reclamando”, comentou o pesquisador. A experiência distrai as crianças de seu medo de injeções, perfuração e obturações.

A descoberta o levou a mais pesquisas sobre os fenômenos de distração e meditação como técnicas para aliviar a dor. Mas, quando Tom Furness sugeriu levar a realidade virtual para o grande público, foram definidos os custos. “Equipamentos de realidade virtual específicos para uso médico podem custar até 35 mil dólares para um headset”, lembrou Hunter Hoffman, colega de Furness na Universidade de Washington.

“A realidade virtual está saindo do universo dos fãs de tecnologia (os chamados geeks) e ingressando para grandes negócios e os preços dos equipamentos estão caindo”. Nos EUA, o Oculus Rift Headset, vendido a 599 dólares, e o HTC Vive, que custa 799 dólares, são exemplos. Para ter esses equipamentos no trabalho, é preciso de um computador que custa cerca de 999 dólares para executar o software. “O mercado vai continuar a expandir conforme a Sony adiciona a capacidade de seus consoles de jogos (videogame) e fabricantes de smartphones atualizam sua tecnologia para chegar mais perto do tipo de desempenho necessário para fornecer uma experiência eficaz de realidade virtual.

A economia pode tornar a realidade virtual uma experiência atraente para alguns hospitais. O atendimento hospitalar equivale a cerca de 30% dos 3 trilhões de dólares gastos anualmente em saúde nos EUA, tornando-se a área mais cara do tratamento. “O preço de um headset e software é pequeno em comparação com a despesa de manter um paciente internado por um dia a mais. Portanto, se há uma chance de que a realidade virtual possa levar a uma alta precoce, faz sentido para um hospital gastar com o hardware”, disse Brennan Spiegel.

Empresas como a AppliedVR já estão tentando inserir a distribuição e desenvolvimento da tecnologia em seus negócios. “Eles estão fornecendo aos hospitais, headsets e software terapêutico. Outro startup, a DeepStream VR, também está trabalhando em software e sistemas que ajudam pacientes com queimaduras e outros ferimentos.

O que estas empresas precisam trabalhar mais é um tipo de segmentação em relação às características dos pacientes, como idade, sexo e interesses; oferecendo um portfólio mais amplo em realidade virtual. Os projetos, como reitera a Bloomberg, “podem ter alguma dificuldade para conseguir manter os pacientes interessados por um longo tempo. A realidade virtual ajuda a pessoa a se sentir melhor, mas a paciente Deona Duke rapidamente ficou entediada com o SnowWorld, o que diminuiu o efeito analgésico”. Para os jovens, é necessário elaborar jogos diferentes, acredita a adolescente. “Esse jogo me parecia ser para crianças”, diz a garota.

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