Médicos analisam a “Covid persistente” e os impactos para o sistema de saúde e pacientes
Setor Saúde entrevistou profissionais dos hospitais Moinhos de Vento, Mãe de Deus e Nossa Senhora da ConceiçãoCom o conhecimento cada vez mais robusto sobre a Covid-19, que já contaminou 104,8 milhões de pessoas e vitimou outras 2,27 milhões (dados de 4 de fevereiro), os efeitos a longo prazo da doença estão sendo documentados. Os estudos que abordam a condição chamada “Covid persistente” (ou Long Covid) indicam um novo desafio a ser enfrentado pelo sistema de saúde e pacientes. Uma ampla gama de sintomas recorrentes entre pessoas que foram hospitalizadas por causa do Covid-19, e mesmo para quem teve a doença e não precisou de hospitalização, está gerando uma nova demanda por cuidados e acompanhamento individualizado.
Os estudos apontam que sintomas aparecem em forma de quatro grandes síndromes: dano aos pulmões e ao coração (em alguns casos permanentes); síndrome pós-terapia intensiva; síndrome de fadiga pós-viral e sintomas contínuos de Covid-19.
Um recente estudo realizado na China e publicado no periódico científico The Lancet, que analisou 1.733 pacientes, apontou que, após seis meses, 76% dos pacientes com Covid-19 hospitalizados em Wuhan, entre janeiro e maio de 2020, apresentaram pelo menos um sintoma persistente. O estudo acompanhou pacientes que ficaram hospitalizados. Fadiga ou fraqueza nos músculos foi o sintoma mais relatado pelos participantes do estudo, com 63% dos 1.655 entrevistados. Já sinais de ansiedade ou depressão foram informados por 23% dos participantes analisados.
No Brasil, resultados preliminares de uma pesquisa com 177 pacientes recuperados de Covid-19, acompanhados pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, revelam que 64% têm algum sintoma persistente seis meses depois do início dos sintomas.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu uma nova diretriz clínica para o tratamento de pacientes com Covid-19, no dia 26 de janeiro. O alerta para a condição “Long Covid”, ou Covid persistente foi a grande novidade. “Compreender essa condição é uma das áreas de trabalho prioritárias da OMS”, disse a entidade. A OMS anunciou que neste mês organizará uma série de consultas para chegar a um consenso sobre a descrição desta condição e seus subtipos e definições de casos. “Esse entendimento científico informará o nome da doença. As consultas incluirão uma ampla gama de partes interessadas, incluindo grupos de pacientes”, diz o anúncio da Organização.
Para entender como a Covid persistente está sendo compreendida e observada nos hospitais do Rio Grande do Sul, o Setor Saúde entrevistou três especialistas: o chefe do Serviço de Pneumologia e Cirurgia Torácica do Hospital Moinhos de Vento, Marcelo Basso Gazzana; a médica intensivista do Hospital Mãe de Deus, Helen Valentin; e o médico infectologista do Hospital Nossa Senhora da Conceição, André Luiz Machado.
Sintomas
No Hospital Moinhos de Vento, Gazzana confirma que a presença de fadiga é o sintoma mais comum observado. De acordo com o especialista, as alterações no longo prazo dependem de qual manifestação foi predominante durante a fase aguda da doença. Ele explica que como os pulmões costumam ser os mais afetados, então a falta de ar também é bastante observada. Porém, Gazzana cita que igualmente são observados sintomas neurológicos, psiquiátricos (transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade), perda de olfato e paladar por algumas semanas e, em alguns casos, até por alguns meses.
“Quanto maior o tempo de internação, que geralmente ocorre por maior gravidade da Covid-19 e suas complicações e/ou por comorbidades descompensadas, maiores as chances de desenvolver esses sintomas persistentes”, afirma.
Porém, Gazzana explica que mesmo casos não tão graves podem apresentar sintomas persistentes após a alta hospitalar. “Nos nossos pacientes temos observado exatamente esses efeitos a longo prazo. Isso não é diferente do que vimos na literatura médica internacional”, observa.
No Hospital Mãe de Deus, a Dra Hellen Valentim aponta consequências semelhantes às descritas pelo Dr Gazzana. “Ao longo desses 10 meses de atendimento de pacientes infectados com coronavírus, observamos que a persistência de sintomas a longo prazo tem sido bastante frequente. As principais queixas relatadas vêm ao encontro com aquelas descritas pelos pacientes de todos os demais países, persistência de fadiga excessiva, dores musculares, perda de olfato e paladar, dificuldades de concentração no retorno às atividades profissionais, vários pacientes relatam sintomas relacionados à ansiedade e transtornos do sono”, diz.
A observação é semelhante no Hospital Nossa Senhora da Conceição, como descreve o Dr André Luiz Machado: “Temos percebido que pacientes que foram diagnosticados com Covid-19 evoluem com alguns sintomas persistentes ou, até mesmo, surgimento de outros sintomas não presentes na fase de doença aguda. A fadiga, falta de ar, mialgia e alteração de olfato e/ou paladar são as queixas mais frequentes na fase de convalescença dessa doença”, destaca.
Intervenções individualizadas e as perspectivas a longo prazo para os pacientes
Os três especialistas ressaltam que ainda não há um tratamento específico para pacientes com sintomas de Covid-19 de longo prazo, já que a diversidade de sintomas em cada pessoa é uma questão a ser levada em conta na hora de iniciar as intervenções. Eles destacam que há apenas comprovação de tratamentos com corticoides, mas limitados a um subgrupo em determinada situação, ponderando sobre a necessidade de tratamentos individualizados. O que pode ser um diferencial para evitar as diminuir consequências mais graves é a qualidade da assistência e do acompanhamento prestado, acreditam os especialistas.
A Dra Valentim pondera sobre a personalização do tratamento: “Como a infecção pelo coronavírus pode se apresentar de diversas maneiras e com severidade muito distintas, a avaliação e o tratamento precisam ser individualizados”.
Ela explica que o atendimento a esses pacientes inicia com uma avaliação médica completa, levando em conta o estado de saúde prévio à esta doença, a severidade dos sintomas apresentados durante a infecção pela doença e como se encontra o paciente no momento da consulta.
“Os pacientes que apresentam sintomas persistentes mais severos estão sendo encaminhados para realização de exames complementares para melhor avaliação e tratamento conforme a necessidade”, diz.
Valentim explica que, em paralelo, avaliação nutricional, psicológica e fisioterapêutica são realizadas conforme a necessidade de cada paciente, destacando que são de extrema importante na recuperação dos sintomas persistentes.
O Dr Machado enfatiza que, como não há tratamento específico para os sintomas persistentes associados à doença, “o importante é fazer uma adequada avaliação clínica, considerar a necessidade de exames complementares para diagnóstico diferencial com outras doenças que podem cursar com sintomas semelhantes ao “Long Covid” e orientar paciente que as queixas persistentes tendem ser resolvidas num período de até 90 dias, mas há relatos na literatura médica de indivíduos que têm sintomas persistentes por mais tempo (6 meses, por exemplo)”.
Para o Dr Gazzana, o aspecto mais importante em relação ao tratamento dos pacientes hospitalizados é o suporte que recebem: um hospital de qualidade, com uma equipe médica de várias especialidades (pneumologia, infectologia, medicina interna, cardiologia, gastroenterologia, neurologia, entre outras) e serviços de enfermagem, farmácias, fisioterapia, nutrição, psicologia e fonoaudiologia (hospitais que contam com equipes multidisciplinares).
Ele detalha as opções de tratamento que são realizadas atualmente. “O tratamento multidisciplinar é a parte mais importante. Não temos um tratamento específico para o vírus aqui no Brasil. Mesmo os antivirais, como o Remdesivir, utilizados nos Estados Unidos, têm ação limitada. Basicamente, o que mais usamos é terapia com corticoide — e não para todo mundo — apenas num subgrupo bem específico de pacientes que estão com oxigenação baixa. Em quem está respirando com oxigenação normal não usamos. Há alguns tratamentos experimentais ainda sem comprovação robusta para usar de rotina. E tem algumas terapias em desenvolvimento, como anticorpos monoclonais. Mas reforço que o mais importante é o suporte”, afirma.
Níveis de reinternação baixos
Um estudo apresentado no dia 15 de janeiro aponta que quase um terço das pessoas que tiveram alta de hospitais na Inglaterra depois de serem tratadas com Covid-19 foram readmitidas em até cinco meses – e quase uma em oito vieram a óbito. Nos hospitais consultados para essa matéria, a realidade é bem diferente: os níveis de reinternação até agora calculados giram de 1,88% a 4,8% dos pacientes.
Gazzana acredita que, na Inglaterra, os números expressivos podem ter acontecido como consequência de uma sobrecarga muito grande do sistema de saúde. “Nesses casos, a tendência é dar alta mais rapidamente para liberar leitos a outros pacientes. Então podem ter acelerado demais a alta, e os pacientes precisaram retornar”, supõe.
Ele afirma que no Hospital Moinhos de Vento o índice de reinternação de pacientes com Covid-19 é baixo em relação à literatura médica internacional, ficando em torno de 1,88% entre os mais de mil pacientes que foram internados. “A média no tempo de retorno ficou em 15 dias, ou seja, a reinternação precoce (com menos de 7 dias) foi incomum, o que significa que a primeira alta foi no momento adequado”, diz.
A reinternação para qualquer doença, de acordo com ele, depende muito de dois fatores: como o paciente sai do hospital e o suporte que ele tem em casa. “No primeiro caso, uma alta muito precoce, antes de o paciente estar em estado adequado para ir para casa, pode resultar em reinternação. Da mesma forma, se ele tiver que fazer uma série de tratamentos em casa e não consegue, ele vai voltar para o hospital”, explica.
A observação é parecida no Hospital Mãe de Deus. As taxas de reinternação, de acordo com Valentim, “são bem mais baixas em relação aos dados publicados em outros países, bem como nossos índices de mortalidade em paciente internados em unidade de terapia intensiva e em pacientes submetidos à ventilação mecânica”.
Ela aponta que o índice de reinternação em 7 dias gira em torno de 2,6% e, em 30 dias, fica em trono de 4,8%. Após a alta, os pacientes seguem em acompanhamento com a Equipe Médica que os atendeu durante a internação.
“Em nossa instituição, começamos a nos organizar para o enfrentamento da pandemia antes do aparecimento do primeiro caso ainda no Brasil. Tivemos tempo de organizar todos os fluxos de atendimento, todo o processo assistencial. Acredito que aprendemos com as experiências relatados pelos colegas de outros países e conseguimos aprimorar o atendimento a partir disso”, ressalta.
Paciente mais suscetíveis à Covid persistente
Os três especialistas afirmam em consenso que os pacientes que mais têm chances de desenvolverem sintomas persistentes são os que passaram por casos mais graves, mas ponderam que a condição poderá ser observada em qualquer pessoa contaminada, independente do quando.
Machado avalia: “Qualquer paciente com diagnóstico de Covid-19 pode evoluir com sintomas persistentes, inclusive, apresentar sintomas não perceptíveis na fase de doença aguda. Os indivíduos com doença moderada/grave tendem a evoluir com mais sintomas persistentes e a fase de convalescença da doença é mais demorada”.
Gazzana explica que os pacientes mais suscetíveis a desenvolverem sintomas persistentes são aqueles que tiveram quadros mais graves e, obviamente, o tempo de internação é um marcador porque o paciente mais grave fica mais tempo internado. “O tempo de internação é consequência, pois ele teve mais acometimento, complicações mais graves ou porque possui outras doenças que tornam o impacto da Covid-19 maior. Então, a gravidade da infecção pelo coronavírus no momento agudo ou quanto mais comorbidades o paciente tiver tornam mais provável o desenvolvimento de efeitos de longo prazo”, diz.
“Conforme temos visto ao longo desses meses de atendimento, os pacientes que seguem com sintomas persistentes mais intensos são aqueles que tiveram um quadro infeccioso também mais intenso, mais sintomático e mais persistente, muitos deles com necessidade de internação hospitalar e mesmo em terapia intensiva”, explica Valentim.
Porém, ela salienta que pessoas que tiveram quadros mais sintomáticos, mas que não precisaram de internação hospitalar também estão apresentando sintomas persistentes, e o Hospital Mãe de Deus se organizou para esse tipo de demanda.
“Para esses pacientes, que não passaram por internação e seguem sintomáticos, necessitando de atenção à sua saúde, o Hospital Mãe de Deus ampliou o atendimento do Serviço de Reabilitação Pós Covid a partir de janeiro de 2021, antes oferecidos apenas aos pacientes que passavam por internação hospitalar”, afirma.
Ocupação de leitos, necessidade de acompanhamento, aumento de custos na saúde, impacto econômico para o paciente
Gazzana prevê um aumento da necessidade de cuidados de saúde para tratar esses sintomas persistentes e as sequelas que ficaram. “No caso de problemas respiratórios, vamos observar pacientes que podem se apresentar com significativa limitação, com menor capacidade laborativa, que terão que realizar menos atividades em geral, podem adquirir outras infecções mais frequentes e vão precisar fazer reabilitação, exames de monitoramento e acompanhamento multiprofissional”, avalia.
Ele reforça que é “importante reforçar a questão dos problemas psicológicos, de pessoas que terão dificuldade para trabalhar ou terão um rendimento menor por causa de depressão e ansiedade”. Ele prevê o impacto de casos de depressão e ansiedade: “Se tomarmos como exemplo depressão e ansiedade, a estimativa conservadora dos primeiros estudos é de que 20% a 30% dos pacientes possam desenvolver esses distúrbios”.
“Além de todas as consequências da pandemia, a longo prazo, vamos observar tudo isso. Alguns pacientes vão ficar com sequelas definitivas e terão que reabilitar. Com certeza vai ter um impacto econômico muito significativo”, complementa, destacando os impactos na qualidade de vida dos pacientes.
Valentim avalia que, conforme os números observados internamente no Mãe de Deus, a ocupação hospitalar relacionada aos sintomas de “Covid tardia” não tem influenciado tanto o dia a dia da instituição. Porém, ela pondera as consequências para o acompanhamento. “Esses pacientes precisam de atendimento, precisam de atenção diferenciada e de um olhar multidisciplinar para plena reabilitação de forma mais breve possível para que possam retornar às suas atividades de forma plena e com menor impacto nas suas atividades”, afirma.
Machado destaca as consequências econômicas e emocionais. “As consequências do “Long Covid” são principalmente econômicas, pois aumentam os custos com cuidados de saúde e acomete pessoas que tinham plenitude para o labor, mas que são afastadas do emprego por não se sentirem aptas para o trabalho. Também elencaria que o “Long Covid” impacta o lado emocional daqueles com sintomas persistentes, provocando quadros depressivos e de síndrome do pânico, por exemplo”, diz.
Análise sobre a pandemia nos estágios atual e futuro
No final da entrevista, os profissionais das três instituições responderam como observam o curso atual da pandemia, sendo questionados se é possível traçarmos um cenário em que a pandemia estará, se não encerrada, mais bem controlada.
Gazzana: “Dependerá da disponibilidade de vacinas e da logística de aplicação. Os cuidados como o uso de máscara, higiene das mãos e o distanciamento social terão de continuar. Mas só isso não adianta, senão a pandemia já poderia ter acabado. As pessoas têm uma adesão muito baixa a esses hábitos, por diversos motivos, entre eles o mau exemplo de algumas autoridades, as quais acabam imitando. Então, precisamos de uma imunização ampla para que o vírus pare de circular. E ainda vai demorar alguns meses para começarmos a ver os resultados. Imagino que, pela velocidade que estão sendo disponibilizadas as doses, só quando o Brasil começar a produzir as vacinas teremos quantidade suficiente para vacinar em larga escala e controlar a pandemia. Enquanto isso não acontecer, fica difícil controlar o vírus. Adicionalmente, ainda temos a complexidade do entendimento do comportamento viral pelas novas mutações”.
Valentim: “O início da vacinação traz a esperança de que possamos controlar essa pandemia uma vez que, imunizando a população, se reduza a circulação do vírus e a gravidade dos casos. Porém, é preciso que uma boa parcela da população esteja imunizada para que possamos ter esse efeito e isso leva tempo. Neste momento, precisam manter as medidas de contenção da disseminação do vírus, evitando aglomerações, realizando a higiene das mãos, fazendo uso de máscara, respeitando o período de isolamento durante a doença para não infectar outras pessoas”.
Machado: “É muito cedo, na minha opinião, para afirmar que a Covid-19 está controlada. Recentemente, fomos surpreendidos por cepas mutantes do SARS-CoV-2 e não sabemos ainda qual o impacto que essas novas variantes trarão para a população. Claro que as vacinas que estão sendo aplicadas na população são animadoras e trazem esperança de dias melhores, mas até que possamos atingir uma porcentagem de imunizados na população que possibilite a imunidade de rebanho, devemos manter as medidas já consolidadas e que minimizam o risco de contágio: uso de máscaras, distanciamento social, higienização das mãos e, não menos importante, reconhecer qualquer sintoma sugestivo de Covid-19 e buscar ajuda médica para avaliação e testagem para SARS-CoV-2”.