Covid-19: Transformação de leitos de UTI pediátricos para leitos UTI destinados a adultos
Hospital americano relata case sobre o temaNo Brasil, muitos hospitais estão com leitos de UTI adulto lotados, enquanto os leitos de UTI pediátrico estão praticamente vazios. Esta realidade se repete em todo o mundo. Quando os hospitais começam a ter um alto nível de admissão, em curto espaço de tempo, de um grande número de pacientes graves com Covid-19, a situação exige dos gestores e equipes médicas novas estratégias para alocar recursos ociosos para a atenção aos pacientes adultos graves. Em artigo (Repurposing a Pediatric ICU for Adults) publicado dia 15 de maio no The New England Journal of Medicine (NEJM), profissionais do Massachusetts General Hospital (MGH), de Boston (EUA), relatam como foi o processo de transformar temporariamente os leitos de UTI pediátricos em leitos UTI exclusivos para pacientes adultos com Covid.
O texto fornece insights importantes a gestores e profissionais da saúde, como gestão de crise, parceria com outros players, apoio para adquirir novos conhecimentos e cooperação entre as equipes de diferentes especialidades.
O epicentro chegou
O estado de Massachusetts seguiu rapidamente a progressão de novos casos, internações e óbitos do seu estado vizinho Nova York. Ao se tornar um dos epicentros da pandemia de Covid-19, uma solução demonstrou ser necessária e urgente: aumentar o número de leitos UTI adulto.
Como apenas algumas crianças hospitalizadas, em 2 de abril de 2020, a equipe de gestão de crise do sistema de saúde MGH determinou que nenhum paciente pediátrico do seu hospital pediátrico MassGeneral Hospital for Children(MGHfC) utilizasse os ventiladores/respiradores, pois outras instalações hospitalares poderiam atender sem queda de qualidade estas crianças. Mas era necessário iniciar um plano de contingência antes de aplicar tal determinação. E acertar com os outros hospitais, pais e equipes esta estratégia.
“Transformamos nossa unidade de terapia intensiva pediátrica (UTIP) de 14 leitos, transferindo as duas crianças internadas e admitindo adultos em apenas 72 horas. Essa estratégia, com foco na disponibilização rápida de prestação de cuidados aos adultos exigiu cooperação entre instituições hospitalares para regionalizar cuidados intensivos em pediatria. Assim como exigiu discussões difíceis entre a coordenação dos serviços hospitalares intensivos do MGH e as famílias dos pacientes”, diz o artigo escrito pelos médicos Phoebe H. Yager, Brian M. Cummings e pela enfermeira Kimberly A. Whalen, todos do MGH.
Hospitais concorrentes
No início de março, contatos quinzenais haviam sido estabelecidos entre médicos intensivistas da pediatria de seis hospitais infantis de Massachusetts. O objetivo era discutir incertezas sobre a pandemia, uma vez que o volume de ocupação leitos dos hospitais pediátricos era universalmente baixo. Esta decisão, de se aproximar de outros hospitais e trocar experiências, mostrou-se fortuita um pouco mais tarde.
“O Floating Hospital for Children e o Boston Children’s Hospital – nossos competidores regionais em período não pandêmico – tinham capacidade disponível e concordaram provisoriamente em aceitar nossos pacientes na UTIP. O primeiro obstáculo ocorreu quando os gestores hospitalares exigiram que as transferências fossem pré-aprovadas pela operadora de seguros de cada paciente”, diz o texto.
Mas a necessidade de rapidez no atendimento aos adultos com Covid era, na verdade, o principal obstáculo a ser vencido neste momento. “Ignorando o processo burocrático de pré-aprovação, nossa equipe responsável iniciou tratativas entre nosso CEO e os CEOs dos hospitais receptores para eliminar essa barreira e garantir cobertura financeira das transferências, caso as seguradoras decidissem faturar os pacientes. Nossos parceiros – que mandavam os pacientes – foram notificados de que a UTIP não estava mais disponível, sendo instruídos a direcionar os cuidados junto a outros centros de saúde. ”
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O medo dos pais
Com medo de que seus filhos contraíssem o Covid-19, os pais das crianças na UTIP ficaram preocupados. Mesmo que dura, a opção de as crianças ficarem no hospital não existia.
Quando os médicos pediátricos levantaram preocupações sobre seus pacientes crônicos, a equipe de gestão de crise permitiu que um número limitado de crianças com câncer e doenças inflamatórias continuasse recebendo atendimento hospitalar, mas exigiu que elas fossem transferidas imediatamente caso fosse necessário.
Preocupados com o fato de os pacientes se sentirem abandonados, os médicos do hospital infantil do Massachusetts General Hospital (MGHfC) acertaram com as equipes dos outros hospitais protocolos a serem seguidos, com um trabalho de cooperação e comunicação constante para acompanhar as evoluções.
O plano
O hospital começou então a trabalhar em um plano com as equipes de bioengenharia, farmácia, enfermagem, tecnologia da informação e medicina para preparar o espaço e os suprimentos necessários para o atendimento dos pacientes adultos com Covid-19 na nova área.
“Formar a equipe da unidade era a maior questão a ser resolvida – empregaríamos médicos pediátricos ou de medicina adulta? Os enfermeiros e médicos da UTIP se prontificaram a permanecer e capitalizar os anos de relacionamento estabelecido para otimizar o desempenho, apesar de terem, agora, que cuidar de pacientes com novas demandas e características. Com a afirmativa da pediatria, as lideranças do hospital expandiram a autorização dos intensivistas da pediatria para atuar na ala de UTI adulta. ”
Segundo os autores, foram identificadas lacunas em conhecimentos e habilidades relacionadas à prestação de cuidados intensivos para adultos, mas foi desenvolvida uma série de ações de cunho consultivo para auxiliar os profissionais da pediatria no desempenho de suas funções.
A decisão se mostrou altamente acertada. “A preservação da equipe interna da UTIP garantiu uma transição rápida e aumentou a moral de todos. Na primeira semana após a transformação da UTI pediátrica em adulta, uma mulher de 60 anos desenvolveu falência múltipla órgãos. Dúvidas surgiram entre os membros da equipe – talvez não possamos enfrentar o desafio”. Mas o trabalho continuou, e no final da semana, a unidade estava cheia. “No final do mês, havíamos atendido 25 pacientes, a grande maioria com Covid-19. Vinte pacientes receberam alta da UTIP e apenas um veio a óbito. ” Uma alta eficiência em se tratando de pacientes graves.
Segundo os autores, diante dos desafios da transição da UTI pediátrica para a UTI adulta, a preservação da equipe pediátrica foi o fator mais importante para o alcance de sucesso na estratégia.
Em 28 de abril, a equipe que comandou todo o processo e a logística dentro do MGH, permitiu que os pacientes pediátricos retornassem à UTIP.
Segundo os autores, a experiência terá efeitos duradouros e permitirá aplicar de forma ainda mais assertiva possíveis transições atípicas como esta.
Acesse o artigo completo (em inglês).