Gestão e Qualidade, Mundo | 9 de junho de 2017

Como a Mayo Clinic está revendo seu negócio de sucesso

Projetos ajudaram a reduzir os custos em 900 milhões de dólares
Como a Mayo Clinic está revendo seu negócio de sucesso

A mudança é difícil. E é especialmente complicada quando a organização em questão está entre as melhores no seu campo de atuação. A Mayo Clinic, instituição de 153 anos, pioneira no conceito de cuidados centrados no paciente, é reconhecida pela excelência diagnóstica e tratamento de pacientes com alta complexidade. A organização é considerada atualmente a melhor dos EUA em ranking geral elaborado pela revista USNEWS (2016/2017).

Oferecer o melhor cuidado a um custo menor é uma constante preocupação nos sistemas de saúde em todo o mundo. Nos EUA, a tarefa atual dos hospitais é caracterizada pela busca da adaptação a modelos de contrato que privilegiem a resolutividade e incentivos. Mesmo sendo o sistema de saúde mais caro do mundo, os EUA nāo são os melhores em termos de “eficiência, equidade e resultados”, conforme opinião de muitos especialistas. Para complicar o Obamacare ficou conhecido por favorecer as seguradoras, em detrimento de outros players como os hospitais.

Adaptação

A Mayo teve que se adaptar às novas políticas de pagamento do Medicare, planos de saúde de alta dedução e restrições das seguradoras sobre cuidados fora da rede, que estão pressionando a receita hospitalar em todo os Estados Unidos. A Mayo, que há muitos anos esteve isolada dessas forças, não é mais imune, diz o Dr. John Noseworthy, diretor-presidente da Mayo. “Nós vamos receber muito menos pelo trabalho que fazemos”, afirma.

Além disso, Noseworthy enxergou antecipadamente uma receita decrescente, proveniente de esforços acelerados de programas de saúde do governo, seguradoras privadas e empregadores para controlar os custos de saúde. Uma ameaça iminente para a saúde da instituição, afirmou o diretor ao The Wall Street Journal (WSJ). Para encarar esses novos tempos, a Mayo teve que mudar, se renovar.

John Noseworthy, diretor-presidente da Mayo

John Noseworthy, diretor-presidente da Mayo

 

Iniciativa 2020

O projeto, chamado Iniciativa 2020 Mayo Clinic, está mostrando resultados em mais de 400 projetos, com o objetivo de pressionar os custos e melhorar a qualidade dos serviços, da cirurgia cardíaca ao tempo de espera da sala de emergência. O Dr. Noseworthy diz à reportagem que dezenas de grandes projetos de reengenharia ajudaram a reduzir os custos acumulados em 900 milhões de dólares nos últimos cinco anos.

O executivo cita como exemplo, a situação em que cirurgiões pediram mais duas salas cirúrgicas para atender a demanda de cirurgia de coração aberto, uma das principais fontes de receita. O Dr. Noseworthy não só disse ‘não’, mas os fez redesenhar todas as facetas do atendimento de cirurgia cardíaca e cortar os gastos em 20%.

Esta solicitação inicial, feita há oito anos, provocou uma renovação, –    parte de uma revisão liderada pelo CEO da Mayo, que testou quase todos os aspectos gerenciais e de estratégia do sistema de saúde – que se mantém até hoje. Após uma revisão inicial, foi aprovada a contratação de um novo cirurgião, que começou em março deste ano. Somente em janeiro, o departamento conseguiu a nova sala de operações – e apenas uma -, já em operação.

“Transformar uma organização de sucesso não é tão fácil”, diz o Dr. Noseworthy ao WSJ. Centenas de médicos da Mayo assumiram internamente, ao longo dos anos, que a realidade já era excelente, e “não estavam propensos a mudar a forma como as coisas funcionam”, explicou.

Pressões para diminuir os custos

Outros hospitais “top class” – de classe superior – também estão enfrentando pressões de custos, incluindo a Cleveland Clinic que, apesar de reduzir os custos em cerca de 800 milhões de dólares nos últimos quatro anos, relatou uma queda de 71% na receita operacional em 2016 para US$ 139,3 milhões, citando pressão na remuneração, maiores custos de medicamentos e ajustes em planos de pensões. Em maio, a Partners HealthCare, um sistema baseado em Boston, fundado pelo Brigham and Women’s Hospital da Harvard e pelo Massachusetts General Hospital, disse que planeja cortar US$ 600 milhões de custos nos próximos três anos para ter condições de competir melhor no novo desafio regulatório, em um “ambiente impulsionado pelo consumidor”.

Enquanto a Mayo é “um tesouro americano”, diz Donald M. Berwick, ex-administrador interino dos Centros de Serviços Medicare e Medicaid, a organização é, como a maioria do sistema de saúde dos EUA, “muito cara, e eles precisam encontrar maneiras de oferecer o mesmo ou melhor cuidado a um custo menor”.

Mayo Clinic: centrada no paciente

A Mayo Clinic, possui modernas e grandes instalações na Flórida e no Arizona, com 19 hospitais e 44 clínicas dentro de um raio de 200 quilômetros a partir de Rochester (Minnesota). São ao todo, 64 mil funcionários atualmente desempenhando funções no sistema. Em 2015, registrou 11 bilhões de dólares de receita, e no ano passado, um aumento de 6% em relação a 2015 (11,66 bilhões).

A clínica foi fundada como um centro especializado em cirurgias em Rochester no ano de 1864 por William W. Mayo, um médico cirurgião e oficial do Exército. A reputação da clínica para “cuidados centrados no paciente” foi incorporada em sua abordagem muito antes de o termo se tornar um fenômeno como conceito de saúde. Na prática, para a Mayo significa na reunir uma equipe de especialistas para se concentrar nas necessidades de pacientes com um problema complexo, e geralmente fornecendo um cronograma de consultas dentro de horas após sua chegada. Os pacientes não precisam marcar cada consulta ou visitar especialistas em diferentes organizações. Além disso, os pacientes são recepcionados por voluntários que os guiam para seus compromissos.

“O que tornou isso bem sucedido foi um registro médico comum”, diz Chet Rihal, diretor de medicina cardiovascular ao WSJ. Em vez de cada médico manter um registro particular para cada paciente, há apenas um, que “acompanha” a pessoa durante toda a sua estada.

Hoje, quase uma em cinco cirurgias envolve equipes múltiplas. “Isso é difícil de fazer em outros lugares onde as pessoas trabalham isoladamente”, diz o Dr. Noseworthy.

Centro Pediátrico da Mayo Clinic

Centro Pediátrico da Mayo Clinic

 

Os médicos da Mayo são assalariados, portanto, não há concorrência sobre taxas ou quaisquer incentivos para pedir exames e procedimentos que um paciente não precisa, em contraste com o comum fee-for-service.

Todos os anos, cerca de 1,3 milhão de pacientes de todos os 50 estados dos Estados Unidos e de 140 países chegam a Mayo. Diversos médicos, administradores de hospitais, políticos e pesquisadores de saúde a visitam todos os meses com a esperança de absorver os seu modelo de sucesso.

Turismo médico

A clínica também está buscando novas áreas de crescimento. A Mayo assumiu a liderança – incluindo comprometer-se com 3 bilhões de dólares de seu próprio capital – em um projeto de desenvolvimento urbano de US$ 5,6 bilhões que está em andamento para transformar sua cidade sede de Rochester em um centro de destino médico para melhor competir com instituições concorrentes em Cleveland, Baltimore, Boston e Los Angeles – conhecidas como destino de turismo médico.

“Tempestade de receita e aumento de custos”

O Dr. Noseworthy, é um neurologista com formação canadense. Liderou uma pesquisa sobre a disponibilidade da instituição para enfrentar o futuro um ano antes de se tornar CEO, em 2009. O estudo identificou uma “tempestade de receita reduzida e aumento de custos” devido ao envelhecimento da população com doenças crônicas e o surgimento de “tecnologias disruptivas”, como o sequenciamento do DNA.

O relatório foi apresentado ao Conselho de Administração da Mayo em agosto de 2008. Seis semanas depois, afirma o Dr. Noseworthy, “o Lehman Brothers [quarto maior banco de investimentos dos EUA na época] desapareceu”. Foi um lembrete de que a vulnerabilidade das instituições icônicas deve ser mantida no “quadro da sala”, como alerta de que a inquietude e a inovação devem fazer parte do dia a dia. A Mayo lançou seu programa 2020 no ano seguinte.

Exemplos

O projeto de renovação e retomada da Mayo incluem muitos aspectos e abordagens, como:

Reestruturação de cuidados para crianças com problemas complexos de alimentação, respiração e deglutição. O tempo médio do diagnóstico foi de 210 dias para apenas 4 – e cortou-se o uso de anestesia e testes por imagem em quase pela metade.

Expansão do papel do enfermeiro no tratamento de pacientes com epilepsia. Com isso, reduziu-se, em média, 17 minutos do tempo que os médicos gastam em uma visita, aumentando espaços para novos pacientes.

Adicionando mais clínicos à sala de emergência durante a tarde reduziu os tempos de espera dos pacientes durante as horas noturnas de alta demanda.

O tempo com o paciente e a participação do profissional

Alguns médicos, porém, ficaram irritados com certas mudanças em suas rotinas, disse o Dr. Noseworthy, incluindo uma iniciativa chamada “eliminar o espaço em branco”, que visa otimizar a agenda dos profissionais. Um dos objetivos era agendar mais tempo para pacientes novos e complexos, enquanto se reservavam espaços de 30 minutos para pacientes já internados no hospital.

As visitas sem pressa, com mais tempo, são uma característica do hospital. Por exemplo, quando um de seus pacientes voou do estado de Washington para uma consulta de acompanhamento, a cardiologista Sharonne N. Hayes rapidamente percebeu que 30 minutos não eram suficientes. O paciente sofreu dois ataques cardíacos desde sua última visita, e os dois precisaram de mais tempo.

Descobriu-se, então, que este paciente estava escalado para uma visita de 30 minutos por engano e, apesar de uma agenda cheia, a Dra. Hayes continuou a visita na hora do almoço. “Eu sei que eles têm a melhor intenção e querem preservar a cultura”, diz a Dra. Hayes ao WSJ, mas “quando você vê esse tempo diminuindo da sua agenda, é uma grande desconexão”.

A administração logo percebeu que a ideia não estava funcionando e deixou que os departamentos criassem suas próprias maneiras de aumentar as visitas aos novos pacientes. “Foi uma lição”, diz o Dr. Noseworthy. “Departamentos e divisões precisavam ter mais controle local desse trabalho”, afirma. Ficou provado que o engajamento dos profissionais depende da comunicação, e principalmente da adaptação adequada dos envolvidos.

Sede da Mayo no Arizona

Sede da Mayo no Arizona

 

Projeto de cirurgia cardíaca

O projeto de cirurgia cardíaca começou junto com o processo de renovação da Mayo, em 2009. Como dito no início, naquele ano, os cirurgiões pediram que as duas novas salas de operação atendessem a demanda de cirurgia porque ‘achavam’ que superaria a capacidade. Mesmo para os departamentos de alta produção de receita, as propostas de alto custo geralmente desencadeiam uma revisão intensa.

Os cirurgiões ficaram inicialmente “desapontados com a negativa”, diz à reportagem Joseph A. Dearani, chefe de cirurgia cardiovascular. Mas finalmente, todos intensificaram os esforços ao objetivo proposto pela direção e fizeram o que foi solicitado.

Uma análise inicial mostrou uma variação no custo médio por caso de US$ 55.000 para US$ 110.000 em um mesmo procedimento. Isso é “muita variabilidade”, diz o Dr. Dearani.

Para aprimorar o tempo e os custos, as equipes da sala de operações competiram em concursos para reduzir a duração de wheels out – período quando a cirurgia de um paciente estava terminada e o fim da preparação da sala para a próxima operação. Os resultados para a sala de cada cirurgião foram publicados, e a equipe se reuniu para discutir o que funcionou e o que não aconteceu. Nenhuma das equipes foi declarada vencedora – não era este o objetivo -, mas o exercício reduziu os tempos de rotatividade média em cerca de 50% – para algo entre 20 e 30 minutos, diz o Dr. Dearani.

Principais fatores de custos, poder de compra e uso de hotéis

O esforço geral revelou dois principais fatores de custo: o tempo de permanência do paciente e o uso de válvulas cardíacas mecânicas pelos cirurgiões. Muitas marcas diferentes de válvulas estavam na prateleira, diz o Dr. Dearani, “foi como entrar em uma loja de calçados”.

A Mayo, um dos maiores usuários de tais válvulas nos Estados Unidos, decidiu usar seu poder de compra para negociar preços mais baixos e limitar os cirurgiões a modelos de dois fornecedores. Demorou quase dois anos para que os profissionais concordassem com quais marcas seriam usadas, diz o Dr. Dearani.

Os médicos também começaram a dar alta a pacientes de fora da cidade para um hotel, um dia ou dois antes do seu voo para casa, e realizavam uma visita ambulatorial. Anteriormente, muitos pacientes permaneciam no hospital até pouco antes de seus voos.

No hospital, os pacientes são expostos à infecção ou permanecem sedentários. “Quando você sai, seu nível de atividade e até seu apetite melhoram”, diz o Dr. Dearani.

Novos protocolos desenvolvidos por médicos capacitaram os enfermeiros para simplificar o atendimento pós-operatório, tornando-o mais eficiente. Alguns turnos começaram no final do dia, para reduzir as horas extras e evitar picos na equipe de unidades de cuidados intensivos. Isso interrompeu alguns compromissos familiares, levando alguns funcionários das salas de operações a buscar redistribuição, diz o Dr. Dearani.

Mayo Clinic Transform Conference – Closing the Gap Between People and Health

Mayo Clinic Transform Conference – Closing the Gap Between People and Health

 

Caso Carrie Mearns

O Dr. Noseworthy diz ao WSJ que o centro do esforço de recuperação da Mayo é uma tentativa de proteger sua capacidade de enfrentar casos complexos, como o de Carrie Mearns, 39 anos. A professora de ensino médio da Carolina do Norte, nascida com uma válvula cardíaca defeituosa, realizou cirurgias cardíacas na Mayo antes e depois do novo protocolo. Em 2000, depois de sofrer uma operação de coração aberto para substituir a válvula, ela passou seis dias no hospital.

Em maio, a mãe de dois filhos voltou a substituir o dispositivo. Na manhã seguinte a sua terceira noite, seus médicos decidiram que ela estava progredindo tão bem que iria dar alta para um hotel naquele dia.

“Ficamos chocados”, diz a Sra. Mearns. “Com a cirurgia de coração aberto, você vai meio que com um pouco de descrença”. A experiência, ela diz, acabou “muito positiva”.

Resultados

Dr. Dearani diz que o departamento reduziu os custos por “milhões de dólares” e reduziu significativamente a variação entre os cirurgiões no custo dos procedimentos cardíacos. A clínica, porém, declinou dizer se atingiu o alvo de 20%.

“Somos um local com muitas personalidades fortes que realmente não adotam facilmente as mudanças”, diz o Dr. Dearani.

Para o Dr. Noseworthy, a iniciativa de cirurgia cardíaca e uma série de projetos semelhantes fazem parte da evolução contínua da organização. Analistas externos forneceram à Mayo projeções de que, nos próximos cinco anos, seu reembolso (ou retorno) poderia diminuir de 5% para 20%, atestando a necessidade de se reinventar.

“A tempestade”, diz o Dr. Noseworthy, “ainda está chegando”. Para os grandes hospitais, as intempéries sempre estarão por vir.

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