[ARTIGO] Digitalização na Saúde Brasileira: O Ano da Inteligência Artificial e o Desafio da Inclusão
Felipe Cabral (Gerente Médico de Saúde Digital do Hospital Moinhos de Vento) e Evandro Moraes (Superintendente Administrativo do Hospital Moinhos de Vento) analisam os impactos das inovações tecnológicas recentes na saúde e projetam o caminho necessário a ser percorrido pelas instituições em 2025.Se 2024 fosse uma história contada na tela do cinema, a inteligência artificial (IA) ocuparia o papel principal, abandonando o status de promessa para se afirmar como força criativa e transformadora. Ao longo do ano, as máquinas deixaram de habitar o campo das ideias para conquistar, de forma concreta, espaço nos consultórios, hospitais e sistemas de saúde. Esse movimento não apenas redefiniu o que entendemos por eficiência e conhecimento, mas também colocou em xeque a exclusividade humana sobre o raciocínio sofisticado. A partir desse ponto, a IA não é mera ferramenta — é um eixo sobre o qual o futuro da saúde começa a girar.
Em um contexto mais amplo, alguns especialistas consideram que estamos diante do que chamam de “4º golpe narcísico” da humanidade. Segundo essa teoria, a evolução das LLMs representa um momento em que as máquinas, pela primeira vez, mostram-se capazes de executar com eficiência tarefas que antes considerávamos exclusivamente humanas: a comunicação, a criatividade e a capacidade de aprendizado autônomo. Assim como Copérnico desafiou a centralidade da Terra, Darwin questionou a supremacia humana no reino animal e Freud revelou o papel do inconsciente, a IA nos obriga a encarar a possibilidade de que não somos mais os únicos detentores do raciocínio sofisticado.
Na saúde, os impactos dessas inovações são imensuráveis. Ferramentas de IA já estão sendo usadas para analisar imagens médicas, prever epidemias, personalizar tratamentos e até mesmo otimizar a alocação de recursos hospitalares. Mas, enquanto a IA avança em um ritmo acelerado globalmente, a realidade da saúde brasileira revela um contraste desafiador.
“Enquanto a inteligência artificial avança para redefinir o futuro da saúde, boa parte dos hospitais brasileiros ainda luta para alcançar o básico: a digitalização.”
O Brasil conta com aproximadamente 7.500 hospitais, mas menos de 500 possuem certificações que atestam a qualidade do atendimento e a segurança dos pacientes. Além disso, cerca de 60% da receita hospitalar do país está concentrada em apenas 150 hospitais. A grande maioria das instituições ainda opera de forma analógica ou com sistemas digitais fragmentados, o que impede a interoperabilidade e limita o potencial das tecnologias avançadas. Esse cenário não só restringe a capacidade do sistema de saúde brasileiro de absorver os benefícios da IA, como também amplia o risco de aumentar as desigualdades no acesso e na qualidade do tratamento.
No setor público, 2024 trouxe um movimento relevante com o lançamento do Programa SUS Digital, que visa modernizar a infraestrutura tecnológica do Sistema Único de Saúde (SUS). Estruturado em três pilares – promoção da cultura digital, implementação de soluções tecnológicas e interoperabilidade de dados –, o programa busca reduzir desigualdades regionais e melhorar a eficiência do sistema por meio da digitalização de processos e maior integração entre os níveis de atenção.
Entre as principais ações estão a adoção de prontuários eletrônicos interoperáveis, a expansão da telemedicina e o uso da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS). Essas medidas representam um esforço para alinhar o SUS às demandas contemporâneas, promovendo maior acesso e continuidade no cuidado, especialmente em regiões mais vulneráveis.
Neste movimento, a telemedicina se consolidou tanto no setor público quanto no privado como uma ferramenta essencial para ampliar o acesso a atendimento de qualidade, levando especialistas a áreas antes desassistidas e diminuindo barreiras geográficas. Apesar disso, a viabilidade econômica ainda é um desafio significativo: manter a infraestrutura tecnológica, treinar equipes, garantir segurança da informação e engajar pacientes exige investimentos consistentes. Sem um modelo sustentável, a telemedicina pode não atingir todo o seu potencial transformador.
Embora o SUS Digital seja um passo importante, ele não é disruptivo. Seu impacto está mais relacionado a corrigir distorções históricas do que a revolucionar o setor. Desafios como infraestrutura limitada, baixa conectividade e resistência à adoção de novas tecnologias ainda precisam ser enfrentados para que o programa alcance seu pleno potencial e contribua para a transformação da saúde pública no Brasil.
“Inovação na saúde é mais do que tecnologia; é a habilidade de transformar acesso em cuidado, e cuidado em impacto.”
Na outra ponta do espectro, encontramos no Brasil grandes instituições que estão liderando o investimento em tecnologia, digitalização e inovação. No Hospital Moinhos de Vento, considerado um dos 3 melhores hospitais do Brasil, o ano de 2024 destacou a importância de iniciativas estratégicas para fortalecer a governança de dados, avançar na interoperabilidade e explorar o potencial da inteligência artificial em diversos aspectos da operação hospitalar. Entre os principais avanços estão o uso de IA para melhorar o acesso aos serviços, aumentar a rotatividade de leitos, transcrever consultas médicas, apoiar diagnósticos e, na área administrativa, elevar significativamente a produtividade.
Os avanços na digitalização da saúde, no entanto, vieram acompanhados de um aumento expressivo nos ataques virtuais. Grandes empresas do setor, incluindo laboratórios e hospitais, foram alvos de invasões, evidenciando a vulnerabilidade dos sistemas digitais. Essas ocorrências trouxeram à tona a urgência de reforçar a segurança de dados, com investimentos crescentes em soluções de recuperação de desastres (DR), monitoramento avançado e protocolos mais robustos de proteção da informação.
Ao final de 2024, no Brasil, o setor passou a discutir de forma ainda mais ampla a necessidade de integrar segurança cibernética como um pilar essencial da transformação digital. Para que os avanços em digitalização e inovação sejam sustentáveis, será crucial não apenas investir em tecnologia, mas também proteger as infraestruturas críticas contra ameaças que podem comprometer não apenas dados, mas vidas.
“A verdadeira revolução digital na saúde não é uma corrida pela tecnologia, mas uma caminhada rumo à equidade e à segurança.”
Apesar de 2024 ser celebrado como o ano da Inteligência Artificial, ele também escancarou as desigualdades estruturais que permeiam o setor de saúde no Brasil. Enquanto grandes instituições avançaram em projetos de interoperabilidade, inteligência artificial e otimização de processos administrativos, uma parcela significativa do sistema de saúde permanece alijada dessa revolução tecnológica, operando em um contexto ainda analógico e fragmentado. O contraste é gritante e reforça uma dura realidade: a evolução tecnológica da saúde não pode ser construída sobre bases frágeis ou promessas de soluções instantâneas.
O ano revelou, com clareza desconfortável, que a transformação digital no setor não virá de hackathons inspiradores ou do modelo acelerado das chamadas organizações exponenciais. Esses movimentos, muitas vezes guiados por uma lógica de crescimento rápido, demonstraram ser insuficientes para lidar com a complexidade, os desafios regulatórios e as demandas éticas da saúde. Em vez disso, o futuro exige uma construção sólida, enraizada em grandes instituições que já carregam a responsabilidade de operar em escala, mas com segurança e qualidade.
Essas instituições precisam liderar com uma visão que combine inovação tecnológica e sustentabilidade, com um compromisso inabalável com a segurança dos dados e a qualidade da assistência. À medida que a inteligência artificial redefine o que é possível, também cresce a necessidade de proteger sistemas contra ameaças cibernéticas, garantir a interoperabilidade dos dados e, acima de tudo, assegurar que os avanços tecnológicos beneficiem a todos, e não apenas os poucos que já têm acesso privilegiado.
Ao encerrar 2024, a lição que fica é clara: a tecnologia por si só não basta. É preciso agir sobre as lacunas escancaradas, tornando a inclusão, a segurança e a sustentabilidade prioridades incontornáveis. Em 2025 e nos anos seguintes, a pauta deve avançar além da inspiração e da promessa, exigindo investimentos estruturantes, formação de profissionais e um arcabouço regulatório que garanta qualidade e equidade.
A verdadeira revolução digital na saúde brasileira não será medida pela velocidade do progresso tecnológico, mas pela profundidade de sua transformação social — um futuro em que a inteligência artificial serve como ferramenta de democratização do cuidado e não como mais um elo a reforçar desigualdades.
Felipe Cezar Cabral (Gerente Médico de Saúde Digital do Hospital Moinhos de Vento) e Evandro Moraes (Superintendente Administrativo do Hospital Moinhos de Vento).