A polêmica da quebra de protocolos hospitalares para pacientes VIPs
Hospitais americanos de elite analisam o tratamento VIP dispensado a "celebridades"O Brigham and Women Hospital (BWH), um dos maiores de Massachusetts, e a segunda maior filial da Harvard Medical School, com 793 leitos, oferece aos seus pacientes/clientes o chamado “Pavilhão Chique” (posh pavillon). A unidade permite que pessoas com alto poder aquisitivo, recebam um tratamento tão diferenciado que chega a colocar em dúvida alguns protocolos médicos. É o que aborda uma extensa reportagem do periódico local Boston Globe.
O atendimento se assemelha à uma estadia em hotel. É possível reservar, por exemplo, “dois quartos na cobertura, com vistas deslumbrantes, para uma estadia de sete meses”. No caso citado, “o paciente tinha aparentes laços com a realeza do Oriente Médio, e trouxe consigo um chef pessoal e uma comitiva de sete atendentes”. Isto, por si só, não é inédito no modelo cost-is-no-object (custo não é o problema, em tradução livre) da medicina VIP, em que hospitais de elite acomodam pacientes ricos, “alguns de terras distantes, que podem pagar uma tabela completa de serviços – e comodidades de luxo como quartos de luxo que custam até US$ 800 por dia”, diz o artigo.
O citado paciente, “comumente tratado como um príncipe, também parecia chegar com algumas ideias concretas sobre como ele queria ser tratado e a equipe Brigham tentou arduamente agradá-lo, mesmo quando entrou em conflito com as políticas do hospital”. Esse é um fenômeno bastante comum que tem um nome: a síndrome VIP. “Hospitais em todo o país, mesmo que saboreiem a receita extra do tratamento destes doentes, tiveram que trabalhar duro para evitar efeitos colaterais”. No caso do BWH, havia muitos.
“O paciente de classe alta foi diagnosticado com uma infecção resistente a drogas, mas ele se recusou a se aproximar de médicos e enfermeiros que estavam vestindo jalecos de proteção, como é exigido. Então, eles fizeram uma exceção”. Os profissionais foram autorizados pelos assessores pessoais do príncipe para prescreverem medicamentos de rotina – caso contrário ele seria barrado no Brigham, como em muitos outros hospitais. O paciente também deu milhares de dólares em gratificações para a equipe – embora tais presentes sejam proibidos em hospitais participantes do Partners Healthcare, sistema de cuidados de saúde que tem o compromisso de oferecer atendimento ao paciente, pesquisa, ensino e serviços à comunidade) como o Brigham. “E sérias preocupações foram levantadas sobre a quantidade de analgésicos regularmente prescritos e administrados”.
O caso fez o Departamento de Saúde Pública de Massachusetts citar o hospital, em denúncia em 2015, por ignorar várias de suas próprias políticas no cuidado com o príncipe, a quem identificou apenas como “paciente # 4” em registros obtidos pelo jornal Boston Globe. “A polêmica também fez o hospital abrir uma investigação interna sobre 13 enfermeiros por supostamente mau uso de narcóticos, sete dos quais foram suspensos durante o inquérito, e todos foram finalmente desligados, de acordo com duas pessoas com conhecimento da investigação”, revela o jornal. O relatório do departamento de saúde pública revelou, contudo, que as drogas foram prescritas apropriadamente.
A porta-voz do BWH, Erin McDonough, disse que os funcionários do hospital não poderiam comentar sobre o caso de um paciente individual – ou mesmo verificar se um determinado paciente esteve internado – por causa das leis de privacidade. “A Brigham tem uma vasta experiência no tratamento de indivíduos de alto perfil e se esforça para ser consistente, dando a cada paciente o mesmo alto padrão de cuidados clínicos”.
“Temos sido desafiados por pacientes, que têm expectativas fora de nossas normas, e sabemos que precisamos fazer um trabalho melhor em educar os funcionários sobre consequências não intencionais de tais acomodações, e em apoiá-los quando isso ocorre” disse ela.
O episódio fez com que o hospital precisasse esclarecer suas políticas relacionadas ao controle de infecção, a administração de drogas e os deveres dos enfermeiros, de acordo com a sua resposta por escrito ao departamento de saúde, revela o Boston Globe. O hospital também recentemente nomeou um gestor clínico para supervisionar pacientes do Pavilhão Chique com circunstâncias especiais e ajudar a equipe quando um paciente solicita serviços fora do padrão normal de atendimento.
“O episódio constrangedor é um exemplo vivo do que pode acontecer quando os administradores, médicos e enfermeiros desviam do seu julgamento clínico habitual e comportamento por causa do status e das exigências especiais de um paciente. O termo Síndrome VIP foi inventado em 1964 pelo Dr. Walter Weintraub, que escreveu que o hospital psiquiátrico de Maryland entrou em colapso quando a equipe se esforçou para responder aos pedidos incessantes de pacientes influentes e seus familiares”, explica a reportagem.
“Líderes da Cleveland Clinic (centro médico acadêmico que oferece atendimento clínico e hospitalar e é líder em pesquisa, educação e informação em saúde) afirmaram que o problema pode ser mais abordado atualmente por causa do aumento do turismo médico, com celebridades, monarcas e líderes políticos dispostos a viajar para longe e pagar altos valores para obter o melhor atendimento. Isso requer vigilância constante de equipes e administradores, para resistir às pressões para mudar o conhecimento e as práticas clínicas habituais – embora pacientes de alto pode aquisitivo não sejam os únicos que podem ser exigentes”.
Em 2011, a instituição publicou nove princípios do “cuidado VIP” no Cleveland Clinic Journal of Medicine. “Médicos alertam contra a quebra das regras,e o recebimento de presentes”. Dr. Jorge Guzman, principal autor do artigo, disse que a clínica trata muitos políticos conhecidos e executivos e que “às vezes conduz equipes para fazer as coisas um pouco diferentes. Quando ele liderou a unidade de cuidados intensivos, houve pressão para criar salas de cuidados intensivos especiais em unidades com mais conforto – mesmo que o paciente ficasse mais distante do atendimento de emergência e de uma equipe da UTI altamente qualificada”. Isto foi principalmente para atender aos pedidos de famílias abonadas, “mas que, necessariamente, não se traduz em melhor atendimento”, disse Guzman. “Nós não estávamos ajudando os pacientes”.
Na Mayo Clinic, com sede em Minnesota, o gestor da medicina geral interna, Dr. Paul Mueller, disse que faz sentido o tratamento de alguns pacientes de alto perfil em andares separados, onde é mais fácil de manter a privacidade e a segurança e as presenças ilustres são menos notadas. “Mas alterar a atual assistência médica é uma história diferente”. A Síndrome VIP, na visão do Dr. Mueller, pode levar profissionais a “supertratar” pacientes com exames de imagem desnecessários, por exemplo, ou “subtratar” evitando biópsias ou outros procedimentos que podem ser perturbadores ou dolorosos. “Muitas vezes, a pressão vem dos assessores de um VIP, em vez de partir do próprio paciente”, diz o especialista.
Outros centros médicos acadêmicos nos EUA estavam relutantes em discutir o assunto. Entre os que se recusaram a comentar sobre a Síndrome de VIP relacionou-se o Massachusetts General Hospital, que oferece suas próprias acomodações de luxo na Phillips House, o Johns Hopkins Hospital, e o Boston Children’s Hospital, onde o número de pacientes internacionais está aumentando vertiginosamente, segundo a reportagem do Boston Globe.
Gestores hospitalares, médicos proeminentes, líderes e personalidades locais também podem ser pacientes VIP. “O ex-prefeito de Boston, Thomas Michael Menino, foi tratado por câncer no Brigham Pavilion”, exemplifica a reportagem.
O príncipe supracitado foi originalmente internado no hospital em 2012. Ele retornou em 2014 para uma cirurgia, acompanhado por um chef, um médico pessoal, seis assistentes, alguns dos quais se identificaram como enfermeiros, e um “ajudante/limpador”, revelou o relatório do departamento de saúde. “Ele tinha dois quartos no Pavilhão, que oferece serviços de portaria, escritórios no quarto, e comida gourmet. A sobretaxa fica entre US$ 300 e US$ 800 por noite, além do custo normal de um leito de hospital e da assistência médica”. O paciente VIP “dispensou grandes quantidades de narcóticos prescritos, o que deixava alguns enfermeiros desconfortáveis”, destaca a reportagem.
Havia outras questões. Um médico (que não teve a identidade revelada) escreveu ordens permitindo uma comitiva pessoal do príncipe para administrar medicamentos de rotina, segundo o relatório. “Sua equipe também foi autorizada a limpar o cateter intravenoso usado para entregar narcóticos para ele”. Sob as regras do hospital, uma enfermeira particular pode ajudar apenas com atividades “cotidianas” e proporcionar conforto.
Em um período durante a estadia real, o paciente desenvolveu febre, teve calafrios e fadiga. “Seu médico assistente escreveu no registro médico que desconfiava que o cateter intravenoso foi infectado e disse que o tubo provavelmente teria de ser retirado (o que seria o protocolo apropriado sob as diretrizes do hospital). Mas isso nunca aconteceu, talvez porque, como disse uma enfermeira aos investigadores, o paciente ficou fixado em algo que pudesse acontecer com o cateter”.
Outras permissões especiais colocam funcionários e pacientes em risco. “Quando os investigadores estaduais entrevistaram um funcionário identificado como ‘diretora enfermeira #1’ no relatório, ela disse que o paciente interpretou o uso de jalecos de proteção como uma indicação de que eles pensavam que ele era ‘sujo’ e pediu que a equipe não usasse”. Outro médico disse aos inspetores que visitou o paciente de cinco a sete vezes por semana e não usou o equipamento de proteção, porque o paciente considerava ofensivo. E o hospital não tinha políticas de controle de infecção no local para a equipe pessoal do paciente.
Quando a situação se tornou insustentável, uma pessoa identificada como um membro da equipe Brigham escreveu uma carta anônima para o departamento de saúde em novembro de 2014, queixando-se da situação, considerando-a antiética e insegura. “Logo depois, o hospital começou sua própria investigação interna”, diz o Boston Globe.
Dr. Robert Klitzman, psiquiatra da Columbia University Medical Center, disse que a síndrome VIP emergiu como um tema quando ele entrevistou médicos para o seu livro When Doctors Become Patients (Quando os Médicos Viram Pacientes, em tradução livre, sem edição no Brasil), publicado em 2008. “Muitos foram tratados como pacientes de alto perfil em seus próprios hospitais, levando a benefícios como cuidados imediatos em emergências e acesso direto a especialistas. Mas o status também prejudicou o cuidado, às vezes, como quando foram ignorado exames de próstata, porque eles estavam envergonhados. Também foi difícil para os médicos proeminentes manter sua condição médica privada”.
Dr. Klitzman disse que quando uma celebridade ou membro da realeza é internado no hospital, “a relação típica entre médico e paciente pode ser transformado. Normalmente, um médico tem autoridade e experiência profissional. Celebridades são vistas como deuses. Se você tiver uma celebridade, você é um mero médico”, explica o especialista.
Por sua vez Dr. Paul Mueller afirmou que, na Mayo Clinic, uma equipe pessoal não está autorizada a dar medicação ou fornecer cuidados médicos. A questão dos presentes é mais complicada, porque os pacientes de certas culturas podem ficar ofendidos quando presentes são rejeitados. A política da Mayo diz que presentes pessoais não podem ser aceitos e devem ser encaminhados para o setor de desenvolvimento. Os presentes de valor inferior a US$ 25 são aceitáveis. Em uma ocasião revelada pelo Boston Globe, um paciente deixou uma caixa de presente contendo um relógio Cartier no escritório de Mueller e, em outra ocasião, um envelope com US$ 10 mil – ambos os quais ele disse ter entregue ao setor de desenvolvimento. “Eu tento direcionar o paciente para outro meio de doação. Pergunto se ele apoiaria nossos programas de ensino ou programas de investigação”.
Por fim, ao ser indagado sobre o risco de o paciente ir embora do hospital se as suas exigências especiais não forem cumpridas, Dr. Paul Mueller conclui dizendo que” às vezes é preciso escrever uma carta ou ter uma conversa”.