Quinto Neto é um dos principais percursores do modelo de acreditação no Brasil. Em sua coluna, aborda assuntos como as certificações de qualidade em saúde, o sistema de saúde brasileiro e a segurança do paciente.
Médicos: o Lícito e o Proibido na Cobrança de Atendimento Através de Planos de Saúde
No Brasil, os planos de saúde geralmente seguem um modelo em que os beneficiários têm acesso a uma rede credenciada de médicos, hospitais, clínicas especializadas, centros de imagens, laboratórios de análises clínicas e anatomia patológica. Nesse sistema, o pagamento pelos serviços dos profissionais e estabelecimentos credenciados é regulado pelo contrato firmado entre o plano de saúde e os prestadores, não havendo margem para negociações individuais entre o paciente, médico e estabelecimento de saúde dentro da rede, salvo em situações muito específicas.
Uma das reclamações mais frequentes dos beneficiários de planos de saúde se relaciona com a cobrança efetuada por médico em consultas, exames, terapias e procedimentos cirúrgicos. Trata-se de um tema sensível que envolve aspectos éticos, legais, bem como questões de relacionamento entre pacientes, profissionais de saúde e Operadoras de Planos de Saúde (OPS). Conquanto seja uma prática difundida, na maioria das vezes se encontra em desalinho com os direitos dos beneficiários.
Causas que motivam cobranças adicionais
Há pelo menos sete razões para que os médicos efetuem cobranças:
Natureza dos contratos médicos: parte dos médicos que atuam em hospitais não são empregados nem possuem vínculo obrigatório com determinados planos de saúde. Operam de forma autônoma. Quando os hospitais possuem o credenciamento de um plano, não significa que todos os médicos estejam disponíveis para atender todos os Há, portanto, uma parcela de médicos que atua de forma particular nos hospitais e, por conta disso, cobram diretamente dos pacientes;
Tabela de honorários médicos: os planos estabelecem tabelas de honorários médicos que podem ser entendidas como defasadas ou insuficientes. Assim, para compensar a presumida diferença, os médicos cobram diretamente do paciente um valor adicional com a alegação de que o plano não cobre o valor real do atendimento;
Termos contratuais e cobertura: algumas especialidades ou procedimentos podem não estar cobertas pelo contrato entre os médicos e um plano. Isso permite que, especialmente em terapias e procedimentos cirúrgicos, os médicos solicitem valores adicionais diretamente do paciente, situação conhecida como “cobrança de diferença de honorários”;
Busca por melhor atendimento: alguns médicos cobram de forma particular sob a justificativa de oferecer um serviço mais personalizado ou de qualidade superior que, segundo eles, os valores pagos pelo plano seriam insuficientes para cobrir os custos operacionais e a remuneração adequada;
Cobertura restrita do plano: certos procedimentos, materiais (ex.: TAVI – implante percutâneo de válvula aórtica – já coberto por alguns planos) ou técnicas utilizadas (os médicos propõem a execução do procedimento cirúrgico por videolaparoscopia quando o plano oferece pela técnica convencional) podem não estar cobertas pelo plano de saúde;
Práticas de mercado e pressão econômica: os médicos, ao considerarem que os valores pagos desestimulam a dedicação adequada aos pacientes, recorrem à cobrança particular para garantir maior qualidade ou execução do atendimento;
Disponibilidade estendida do profissional: cobrança extra efetuada por médicos ou equipes médicas, para garantir que os profissionais estejam disponíveis para consultas e especialmente em procedimentos como partos e cirurgias.
Regulação sobre cobrança em planos de saúde
Enquanto o Código de Defesa do Consumidor1 estabelece que cobrar por serviços inclusos nos planos de saúde pode ser interpretado como prática abusiva (“dupla cobrança”), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)2 proíbe a cobrança de valores adicionais por consultas ou qualquer outra prestação de serviço que tenha cobertura obrigatória pelo plano contratado. O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, registra no Código de Ética Médica3 que “É vedado ao médico praticar dupla cobrança por ato médico realizado” (art. 66). Consequentemente, cobrar de paciente, sem justificativa ou fora do que foi acordado, corresponde a uma infração ética. Os médicos precisam estar atentos para não realizarem cobranças adicionais de pacientes que utilizam planos, salvo nos casos de serviços não cobertos.
A ANS prevê, em duas condições, a autorização pelas OPS4 de tratamento ou procedimento prescrito que não se encontra no rol:
Comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico;
Recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec)5 ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.
No que concerne à comprovação da eficácia de medicamentos, o Supremo Tribunal Federal (STF) 6 decidiu que apenas evidências científicas de alto nível, como ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análises, são suficientes para embasar decisões judiciais sobre concessão de fármacos, enquanto estudos de menor rigor, como casos-controle e opiniões de especialistas, são considerados insuficientes. Essa decisão oferece uma base técnica e jurídica mais sólida para contestar pedidos judiciais de medicamentos com eficácia incerta, alinhando o setor suplementar e a saúde pública a critérios rigorosos.
Regras gerais que regem o comportamento dos médicos credenciados
Quando os médicos se credenciam a um plano de saúde, assinam um contrato que destaca os serviços prestados aos beneficiários que devem ser pagos exclusivamente pelo plano, de acordo com as tabelas e condições pactuadas. Assim, não se pode cobrar dos pacientes valores adicionais ou extras pelos mesmos serviços cobertos pelo plano. Quando tal evento acontece, tem-se a “dupla cobrança” que configura uma prática ilegal. Não se justifica legalmente que os médicos, considerando que os valores remunerados pelo plano sejam abaixo do que consideram apropriado, estejam livres para cobrar dos pacientes.
1 Código de Defesa do Consumidor e normas correlatas. – 7. ed. – Brasília, DF: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2023. 147 p.
2 Lei Nº 14.454, de 21 de setembro de 2022. Altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, para estabelecer critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar. Brasília, Presidência da República.
3 Resolução CFM n° 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019.
4 Lei Nº 14.454, de 21 de setembro de 2022. Altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, para estabelecer critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar. Brasília, Presidência da República.
5 Brasília: Ministério da Saúde, 2018. BRASIL. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único De Saúde (CONITEC).