Antonio Quinto nnnn, Gestão | 2 de março de 2023
Financiamento: a questão essencial do Sistema IPE Saúde
Tudo que se relaciona com a saúde dos indivíduos é sempre um assunto polêmico porque se trata, acima de tudo, da preservação da vida. Consequentemente, as discussões tendem a ser calorosas e cheias de emoções, o que significa dizer que a racionalidade ocupa um espaço exíguo. Isso não é diferente quando se discute planos de saúde.
O setor de planos de saúde é reconhecidamente de alto risco onde as instituições trabalham em um ponto de equilíbrio instável, ou seja, a qualquer momento poderão surgir fatos/eventos imprevisíveis que reduzam ou impeçam a viabilidade do negócio. No caso do IPE Saúde, um sistema categorizado como de autogestão, possui um perigo adicional – uma clientela cativa que tende a ampliar a proporção de indivíduos com 59 anos ou mais de idade. Isso significa maior morbidade e, por conseguinte, maior utilização de serviços. Isso significa maiores custos. Quanto mais envelhecida a carteira, maior a sinistralidade. Por conta disso, a solvência [1] de um plano de saúde deve ser uma questão de extrema relevância, a qual depende de diversos fatores, entre os quais destacam-se: política de reajuste de salário dos servidores, forma de contribuição para o plano, gestão específica do plano, mudanças no rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) [2], demandas judiciais, aspectos demográficos e epidemiológicos dos usuários.
Existe uma Instrução Normativa do IPE Saúde que determina o marco da sinistralidade em 85%, ou seja, que o valor correspondente a esse percentual seja o limite dedicado ao pagamento dos prestadores, enquanto o restante deve ser aplicado nas atividades de administração e atualização do sistema como um todo – pessoal, instalações e equipamentos. Há alguns anos o Sistema IPE Saúde atua com uma sinistralidade acima de 100%. Isso expressa a dificuldade de cumprir obrigações contratuais com os prestadores e fornecedores, assim como o constrangimento causado aos usuários que, em variados momentos, encontram empecilhos para receber a assistência necessária.
O IPE Saúde se encontra em uma encruzilhada: os custos se elevam anualmente enquanto os salários dos servidores não são reajustados na mesma taxa da inflação, sendo que na área da saúde esse índice é sempre maior que a média geral. Isso é um indicativo da necessidade de um ajuste estrutural profundo a fim de preservá-lo. A comunidade gaúcha, portanto, encontra-se diante de uma escolha difícil: extinguir ou manter o plano. É necessária uma discussão pública sobre o seu destino, devendo ser envolvidos os vários segmentos interessados.
Uma eventual extinção do Sistema IPE Saúde é a decisão mais controversa e perturbadora. Necessariamente o governo precisará encontrar uma alternativa que amenize o impacto de uma medida tão drástica. Por outro lado, manter o plano implica em promover um aumento da contribuição, tanto dos usuários quanto do governo, que não será pequena em função da enorme defasagem gerada entre os valores arrecadados e os que precisam ser pagos aos prestadores pelos serviços utilizados. Mantida a trajetória de custos crescentes do mercado, a vinculação da maior parte dos usuários do plano a um percentual do salário de contribuição, assim como a não contribuição dos dependentes, o Sistema avança, implacavelmente, para a insolvência.
Anualmente a ANS, órgão regulador e fiscalizador do sistema de saúde suplementar, estabelece o percentual de reajuste dos valores dos planos. No caso do IPE Saúde, não há qualquer regra que defina revisões e reajustes nos valores remuneratórios. Isso origina, rigorosamente, um ambiente de defasagem que se acumula ao longo dos anos e dá elementos consistentes para reclamações dos prestadores. Mesmo ocorrendo reajuste de salário dos usuários, isso não altera o comportamento das despesas. Ou seja, a receita continua abaixo das despesas estabelecidas pelos prestadores. Consequentemente, forma-se uma pressão junto ao IPE Saúde a partir dos prestadores que almejam soluções de curto prazo (que são efêmeras), enquanto a crise estrutural do Sistema IPE Saúde pressupõe medidas de médio e longo prazos. Esse descompasso entre as necessidades dos prestadores e fornecedores e as possibilidades de pagamento do Sistema IPE Saúde eleva o grau de insatisfação dos primeiros e desnorteia os gestores da autarquia.
O aporte extraordinário do governo ao Sistema IPE Saúde, medida aplicada há algum tempo, devido aos insistentes e dramáticos reclamos dos prestadores, somente adia a próxima crise. De fato, é indispensável uma reformulação do modelo de financiamento do Sistema IPE Saúde, além de uma reestruturação organizacional e informacional (já em curso) associada a aplicação de um novo modelo assistencial que associe medidas de atenção primária com ações de média e alta complexidade articuladas com prestadores preferenciais.
[1] Solvência de um plano de saúde é a capacidade de honrar os compromissos referentes à assistência à saúde previstos em contratos, como também apresentar solidez patrimonial que garanta a continuidade de suas atividades (Bastos, LL. Insolvência das operadoras de planos de saúde brasileiras: uma análise empírica do efeito de fatores internos e externos à firma. Vitória, 2019).
[2] Embora o Sistema IPE Saúde não esteja sob a jurisdição da ANS, as regulamentações efetuadas por essa agência influenciam o comportamento dos prestadores em relação à autarquia.
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Antônio Quinto Neto