Qualidade Assistencial | 22 de setembro de 2017

Compaixão nas Organizações de Saúde

Compaixão nas Organizações de Saúde

As pessoas imaginam que a compaixão representa uma característica fundamental dos cuidados de saúde, a qual deve expressar-se automaticamente nas atitudes dos médicos, enfermeiros, supervisores, gerentes, coordenadores de serviços e na prática da alta administração. No entanto, nos últimos anos o que se tem destacado é a desumanidade na assistência à saúde. Isso tem levado gestores públicos e privados a desenvolverem medidas que “humanizem” os cuidados prestados às pessoas que necessitam da atenção médico-assistencial. Colocado dessa forma, pressupõe-se que o problema se localiza na conduta dos profissionais e que as organizações de saúde representam tão somente ambientes onde ocorrem os atos de desumanidade.

Aparentemente, nem as organizações nem os profissionais de saúde encontram-se preparados para a prática da compaixão. Os ambientes de cuidado, estressantes por natureza, não só dificultam essa prática, como tornam as organizações insensíveis ao sofrimento que, por sua vez, atraem colaboradores com características similares. A tese é que as organizações devem estruturar-se para funcionar no sentido de criarem um clima ameno de acolhimento, cordialidade e respeito, tanto entre os próprios colaboradores quanto entre estes e os clientes que buscam cuidados.

Ser compassivo exige esforço, conquanto as condições de trabalho penoso nas organizações de saúde constituem um obstáculo adicional a ser superado. Além disso, a pressuposição de que todos os profissionais de saúde, em particular médicos e enfermeiros, sejam compassivos é uma interpretação excessivamente otimista. Infelizmente a compaixão não tem nada a ver com profissão. Embora alguns profissionais de saúde sejam naturalmente compassivos, a maioria necessita de treinamento no cultivo da compaixão para consigo mesmos e para com os outros.

No início do século XX as organizações de saúde foram estruturadas com uma identidade predominantemente cristã [1]. A compaixão era uma virtude individual, refletida na política pública das organizações de saúde e nas relações dos profissionais com os pacientes. Isso, na década de 1950, modificou-se com o desenvolvimento da ciência médica, ocorrendo progressivamente a substituição da compaixão pelo profissionalismo, como se fossem elementos concorrentes. Na década de 1970 começou a preponderar o discurso político do acesso à assistência e participação de todos os cidadãos. Na década seguinte apareceu o argumento econômico nos cuidados de saúde. É neste momento que os gestores passam a ter maior influência, na suposição que representavam a melhor forma de reduzir custos. Ironicamente, nessa época, a compaixão retorna à cena dos serviços de saúde como um meio de melhorar os cuidados de baixa qualidade [2].

O reconhecimento cada vez mais amplo sobre a ocorrência de falhas e incidentes assistenciais no cotidiano das organizações de saúde, adicionado das reclamações dos clientes quanto à forma inumana dos cuidados recebidos dos profissionais de saúde, reacende a chama da compaixão como um atributo que poderia elevar tanto a segurança quanto a qualidade dos serviços prestados.

Na atualidade entende-se a compaixão como a sensibilidade ao sofrimento em si mesmo e nos outros com o compromisso de tentar aliviá-lo e evitá-lo [3]. Ela oferece a possibilidade de reagir ao sofrimento com compreensão, paciência e bondade, em vez de medo e repulsa [4]. No âmbito da assistência à saúde isso relaciona-se com a prática interpessoal que necessariamente precisa estar apoiada em princípios organizacionais. Assim, existem evidências de que, por um lado, os cuidados compassivos (respeito, expressões apropriadas de preocupação com o sofrimento e apreensão, informações sobre os cuidados realizados e tomada de decisão conjunta levando em consideração as necessidades e expectativas) aceleram a recuperação dos clientes; por outro, os colaboradores que são compassivamente tratados pelas organizações de saúde e uns com os outros, sentem-se mais fortes, criativos e abertos [5], têm maior satisfação no trabalho e se conectam de forma mais profunda com os clientes.

A humanização não se estabelece com o exercício da razão, através de medidas assistenciais e administrativas, mas a partir de um sentido mais amplo da vida e das pessoas, incluindo a arte e a espiritualidade, tornando o agir profissional menos desagradável e mais gratificante.

Em 2013, o Relatório Francis [6] destacou a importância da compaixão. Este documento identificou a falta de compaixão como uma das principais causas de falhas nos serviços de saúde do Reino Unido. Daí derivaram três recomendações:

1) treinar todos os profissionais de saúde em compaixão,

2) considerar e avaliar a compaixão como uma competência fundamental dos profissionais de saúde,

3) adotar e implementar normas e cuidados compassivos nos cuidados de saúde.

A nova era do desenvolvimento evolutivo das pessoas e das organizações clama por uma interligação entre razão e sentimento, substituindo o paradigma materialista e fragmentário vigente por um paradigma de interconexão que torne as pessoas mais íntegras, dignas e compassivas consigo mesmas e com os outros. Isso tornará as organizações de saúde mais efetivas na missão de servir seus clientes e suas comunidades.

[1] Leget C. Why good quality care needs philosophy more than compassion: Comment on “Why and how is compassion necessary to provide good quality healthcare?” Int J Health Policy Manag. 2015;4(10):677–679.
[2] Hochchild A. The managed heart: the commercialization of human feeling. Berkeley: The University of California Press; 1983.
[3] Gilbert P, Choden K. Mindful compassion: using the power of mindfulness and compassion to transform our lives. London: Constable-Robinson; 2013.
[4] Thupten, J. Um coração sem medo: por que a compaixão é o segredo mais bem guardado da felicidade. Rio de Janeiro: Sextante, 2016. 224 p.
[5] Cole-King A, Gilbert P. Compassionate care: the theory and the reality. Journal of Holistic Health Care 2011; 8: 29-37.
[6] Francis R. Report of the Mid Staffordshire NHS Foundation Trust public inquiry. London: The Stationary Office, 2013

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