A Ciência e a Arte de Liderar e Gerenciar Médicos (Parte 1/3)
A função de gerenciar a atuação dos médicos nas organizações de saúde é uma atividade tensa, extenuante e incerta. Tanto é verdade que a maioria dos dirigentes evita abordar esse assunto. A vivência diária mostra que habitualmente as relações entre médicos e gestores são instáveis e de baixa produtividade. Isso se explica, em parte, pela falta de sintonia entre as funções clínicas e as funções de liderança e gestão. Enquanto os gestores preocupam-se em administrar os recursos necessários para o bom funcionamento das organizações de saúde, os médicos costumam entender que tudo que elas encerram encontra-se a sua disposição, ou melhor, submetido a sua vontade. Isso, aparentemente, fortalece o tradicional estilo de “comando e controle”[1] aplicado pelos médicos. O comportamento de “dar ordens”, aprendido na formação profissional, costuma funcionar adequadamente em uma sala cirúrgica ou unidade de internação, mas pode ser um desastre em outros âmbitos, como finanças, gestão de risco, recursos humanos, instalações, relacionamento com fontes pagadoras e outros grupos interessados.
Em vista das diferentes visões de mundo dos médicos e gestores, há pelo menos dois aspectos que precisam ser ponderados para atenuar ou superar as dificuldades de entendimento entre ambos, condição que via de regra atrasa ou impede o desenvolvimento das organizações de saúde.
Intenso treinamento em conhecimento especializado: os médicos são treinados por longo tempo, e de forma intensiva, em técnicas de cuidados médicos. O denso conhecimento especializado e o exercício da prática são incorporados através da observação diária dos docentes/preceptores que representam exemplos. Assim aprenderam os princípios da prática médica – “diagnosticar” e “tratar” –, bem como a relação médico-paciente e a abordagem de questões próprias da gestão específica da prática médica. O julgamento clínico passa a ser a regra de ouro para a solução de todos os problemas, sejam eles clínicos, administrativos ou relacionais. Isso os torna, em certo sentido, vítimas do “pensamento único”, com acertos e defeitos decorrentes deste.
Insuficiente treinamento em liderança e gerência: médicos aprendem sobre liderança e gestão observando o comportamento e as decisões dos docentes/preceptores que, por sua vez, não tiveram a oportunidade de treinamento formal sobre esses dois temas. Por conta disso, não raro fala-se na prática médica sobre o emprego do bom senso na tomada de decisão, como se esse atributo fosse comum a todos em igual proporção. Isso cria condições propícias para a execução de decisões disfuncionais orientadas pelo conhecimento especializado, em detrimento do conhecimento de liderança e gestão (como se não fossem domínios complementares e imprescindíveis). O raciocínio clínico, que encerra características próprias, baseado no conhecimento e vivência de patologias (quadros mórbidos configurados) e no sofrimento dos pacientes, possui força de persuasão pela sua eficácia evidenciada no dia a dia e sustentação através do saber especializado. Contudo, a extrapolação dessa forma de entendimento para o contexto da condução de pessoas e gestão de recursos provoca, em ambientes complexos, situações singulares, ineficientes e ineficazes. Dentro desse enfoque, a falta de treinamento em liderança e gestão anima os médicos a lançar mão da autoridade clínica como instrumento básico de atuação e relacionamento[2]. Por conta disso, por exemplo, não raro empregam métodos primários de convencimento: coerção, imposição, medo e ofensa. Aliás, quanto mais regressiva for a administração institucional em termos de regras, normas e procedimentos (deficiência de compliance), maior o desarranjo organizacional e a força do comportamento autoritário dos médicos. Esta conformação amiúde pode levar as organizações de saúde à deterioração organizacional (o sinal mais destacado é o permanente estado de crise) e, em última instância, chegar à falência.
A progressiva ascensão dos custos e a complexidade da atividade médico-assistencial expôs a precariedade dos médicos em lidar com questões relativas à gestão da assistência e componentes associados. A ideia ingênua de acreditar que qualquer médico, em particular o bem-sucedido e respeitado em sua especialidade, possui habilidades de liderança e gerenciamento de serviços de saúde (função de gestão), assim como a capacidade de intermediar assuntos contraditórios com determinados segmentos interessados (função de negociação e gerenciamento de conflitos), conserva as organizações de saúde aprisionadas a uma etapa rudimentar de desenvolvimento organizacional, com reflexos negativos tanto para elas quanto para os médicos.
Na atualidade, o crescente grau de complexidade dos cuidados de saúde e a alta expectativa de segurança e qualificação por parte dos pacientes e familiares, reclamam uma combinação do conhecimento médico com o conhecimento de gestão. É a conexão entre esses dois domínios que molda a essência da liderança médica[3] e institucional.
[1]Drummond, D. Physician leadership skills – 3 reasons doctors make poor leaders and what you can do about It. https://www.thehappymd.com/blog/bid/290715/physician-leadership-skills-3-reasons-doctors-make-poor-leaders-and-what-you-can-do-about-it. Acessado em 05/jan/2019.
[2]Stoller, JK. Developing physician leaders. A perspective on rationale, current experience, and needs. Chest. 2018 Jul; 154(1):16-20.
[3] Medical Leadership in postgraduate medical education. Dutch Association of Medical Specialists, November 2016.
www.medischevervolgopleidingen.nl/sites/default/files/fms_visiedoc_medischleiderschapeng_vdef03lr.pdf. Acessado em 07/jan/2019.