Hospitais Filantrópicos e Acreditação
Os hospitais filantrópicos, ao se comprometerem com a observância de uma legislação que lhes outorga determinadas isenções, obrigam-se a atender beneficiários do Sistema Único de Saúde (SUS) numa proporção de pelos 60% do total de sua capacidade operacional. Por conta disso, via de regra encontram-se sufocados por limitações econômico-financeiras. Como as exonerações fiscais, decorrentes da condição filantrópica, não contrabalançam o déficit dos pagamentos pelos serviços prestados aos beneficiários do SUS, gera-se um sistema rigorosamente deficitário, às vezes compensado pela agilidade e influência de alguns gestores que “correm atrás” de emendas parlamentares e incentivos nas três esferas governamentais que, por sua vez, encontram-se atreladas a outros acordos nem sempre republicanos. Assim, forma-se um arranjo econômico-financeiro frágil e instável composto pelo que os hospitais oferecem e prestam, pelo que a população e os agentes públicos esperam e exigem, e pelo que o SUS remunera e decreta aos prestadores. Poucos creem que essa equação possa dar certo, enquanto alguns vivem na esperança de que em algum momento tudo se corrigirá. Quando se contempla o SUS nos seus 30 anos de existência – louvado mais pelas promessas do que pelo que realmente oferece – vê-se que estamos diante de uma quimera. Todavia o alento universalizante do SUS ofusca até os mais preparados profissionais do setor saúde que são capturados por esse ardil intransponível.
Em recente pesquisa[1] baseada em uma amostra de 119 hospitais filantrópicos da Região Sul do Brasil, no período entre 2010 e 2014, os autores, tendo em conta que a acreditação supostamente melhora a reputação e a confiança dos mesmos, estabeleceram a premissa de que essa condição, obtida através de uma agência externa independente, aumentaria a capacidade de captação de recursos. Estes se originariam do atendimento de pacientes portadores de convênios de saúde e daqueles que fossem capazes de arcar diretamente com as despesas dos cuidados. Do ponto de vista institucional, trata-se de uma espécie de Robin Hood, ou seja, extrair recursos de quem tem para amenizar as insuficiências de quem não tem. Adicionalmente, só quem atua de forma leiga (o que é comum na administração das organizações de saúde), ou é mal-intencionado, pode conjeturar que seja possível atender, da mesma forma, públicos com necessidades e expectativas diferentes (pacientes SUS, pacientes de planos de saúde e pacientes com capacidade de arcar diretamente com as despesas de saúde).
A análise da amostra utilizada na pesquisa apontou que as variáveis organizacionais exibiam alta variabilidade entre os hospitais e isso influía no desempenho econômico-financeiro. De forma resumida, no que concerne à relação com a acreditação, os resultados foram os seguintes:
- A acreditação influencia negativamente no resultado econômico. Os hospitais acreditados posicionados na centralidade da amostra apresentavam menor desempenho econômico em comparação com os não acreditados. Por conta disso, os autores deduziram que, para a maioria dos hospitais filantrópicos da região sul do Brasil, ser acreditado não contribuiria para a melhoria da rentabilidade.
Comentário adicional: embora esse achado contrarie a literatura especializada[2], a qual destaca haver afinidade positiva entre a acreditação e o desempenho econômico, isso não surpreende. Existem variados fatores organizacionais atuantes que, adicionados dos escassos recursos auferidos através do SUS, concebem um ambiente de precariedade e insegurança nos hospitais filantrópicos.
- Baixo número de hospitais filantrópicos acreditados.
Comentário adicional: Esse achado também não surpreende. Uma vez que estes hospitais atendem predominante ou exclusivamente SUS, e os valores obtidos pelos serviços prestados são insuficientes, está dada a condição que os inviabiliza de atuar efetuando melhorias nos serviços em geral e na segurança. Quem convive em situação-limite não consegue pensar em melhorias, mas apenas na sobrevivência. Logo, hospitais filantrópicos que alcançam a acreditação pertencem a um grupo singular das exceções.
Se os hospitais filantrópicos atendem os beneficiários do SUS de forma prioritária ou exclusiva, tendo o gestor público como a principal ou única fonte pagadora, qual a relevância em obter uma acreditação? Nenhuma. Melhorar a reputação e a confiança não altera em nada a situação dessas instituições. Atuam no limite ou abaixo das condições econômico-financeiras de viabilidade institucional – “tudo é precário e urgente”. Se tiverem a oportunidade de acesso a algum recurso adicional, é natural que a tendência seja aplicá-lo nas situações que se encontram na fronteira da irreversibilidade.
Caso os gestores públicos não reconheçam a imprescindibilidade de desenvolver um plano ordenado com o propósito de dar acesso a recursos adicionais que conduzam à correção e melhoria das condições estruturais e de processos – tanto assistenciais quanto administrativos e de apoio -, os hospitais filantrópicos continuarão, a despeito do empenho dos seus gestores e colaboradores, atuando de forma precária e arriscada.
[1] Silva, MZ; Sell, FF; Ferla, R. Relação entre características organizacionais e desempenho econômico-financeiro em organizações de saúde. Advances in Scientific and Applied Accounting. 2018, São Paulo, v.11, n.1: 47-70; Jan/Abr.
[2] Schmaltz, SP, Williams, SC, Chassin, MR, Loeb, JM, Wachter, RM. Hospital performance trends on national quality measures and the association with joint commission accreditation. Journal of hospital medicine, 2011, 6 (8), 454-461. https://doi.org/10.1002/jhm.905 Schmatz et al.