Gestão | 1 de agosto de 2025

Assistência à Saúde: Mercado e Justiça Social

Assistência à Saúde Mercado e Justiça Social

A assistência à saúde, pelas características peculiares que encerra é, em grande medida, controlada pelas forças de mercado[1]. De outra parte, os prestadores de serviços de saúde (médicos, hospitais, clínicas, laboratórios), fornecedores de insumos e operadoras de planos atuam em um ambiente no qual a política pública, diferentes filosofias de cuidado e a barganha política podem gerar, do ponto de vista econômico e assistencial, tanto impactos valiosos quanto devastadores[2]. Também não é desprezível o fato de que os cuidados de saúde há muito tempo são oferecidos por uma mistura de organizações com e sem fins lucrativos[3].

Há duas correntes que, socialmente, orientam a prestação de serviços: uma que destaca a justiça social (cuidar de todos) e outra que se direciona pra os que optam em pagar, seja de forma direta ou indireta (pagamento particular e planos de saúde). Persiste o embate entre essas duas formas de cuidados de saúde: grupos que defendem um ou outro modelo no propósito de alcançar a hegemonia, ou seja, a disputa de domínio se encontra sempre presente.

Quando o atendimento se dá em um estabelecimento de saúde que acolhe tanto pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto do Sistema de Saúde Suplementar, existe a probabilidade de ocorrer cobrança adicional em função do caráter misto. Esse modelo, com predomínio do setor privado no financiamento e na prestação de cuidados de saúde, é uma combinação de elementos públicos e privados que tenta conciliar duas lógicas diferentes: mercado e justiça social. Ambos, o SUS e o Sistema de Saúde Suplementar, encontram-se subordinados às forças de mercado: remuneração de profissionais de saúde, medicamentos, materiais e equipamentos médicos[4], instalações e tudo que é necessário à prestação de serviços orientam-se por considerações econômicas. É nesse ponto que se origina uma enorme confusão entre gestores públicos e privados, pacientes, prestadores e fontes pagadoras no que concerne aos aspectos econômico-financeiros. Fundamentalmente, isso se relaciona com as cobranças adicionais, seja dos estabelecimentos de saúde, seja dos médicos.

Mercado

A lógica de mercado enfatiza a competição, a eficiência e a busca pela viabilidade financeira[5]. No setor saúde isso se traduz nos serviços privados onde, até certo ponto, a oferta e a demanda determinam preços e disponibilidade dos serviços. A eficiência, ao se basear na maximização dos recursos, estimula a geração de melhorias e inovações tecnológicas. O Sistema de Saúde Suplementar vincula-se a essa vertente.

Cabe destacar que, culturalmente, na assistência à saúde quase tudo que sugere ganho financeiro carrega uma pesada conotação negativa. Isso decorre de dois motivos principais:

  • Desproporção entre o interesse financeiro e a necessidade assistencial: Quando se torna excessivo o foco em sustentabilidade econômica, habitualmente surge questionamentos se as decisões dos prestadores de serviços de saúde estão sendo orientadas pelo melhor interesse dos pacientes ou pela maximização dos ganhos financeiros. Isso acarreta aumento de custos desnecessários, redução da qualidade dos serviços e até a priorização de tratamentos economicamente mais vantajosos em detrimento de alternativas terapêuticas menos onerosas. Como esse risco se encontra sempre presente, as fontes pagadoras municiam-se de dispositivos para conter ou reduzir essa possibilidade;

  • Saúde como bem social: a saúde, ao ser considerada como um direito fundamental, tende a se confundir com uma necessidade básica, ou seja, aquilo que é imprescindível para os indivíduos. Por conta disso, perceber que os serviços de saúde são comercializados e, portanto, motivo de ganho econômico, gera desconforto. Os medicamentos, embora sigam a lógica de mercado, parece haver um acordo tácito de aceitação social, O mesmo não acontece com a prestação dos cuidados de saúde. Quando se instaura o caráter negocial, há sempre uma tendência de despertar um certo grau de reprovação. Isso é amenizado quando está presente o terceiro pagador.

A insuficiente concordância e poucos fatos sobre o significado e as implicações do crescimento do mercado com fins lucrativos na assistência à saúde, principalmente em decorrência do avanço tecnológico em diagnóstico e tratamento, é algo que precisa ser enfrentado a fim de se encontrar um equilíbrio mínimo entre mercado e justiça social.

Justiça Social

A justiça social na saúde busca garantir que todos, independentemente de sua condição econômica ou social, tenham acesso aos cuidados de saúde. Isso cabe ao governo que deve estabelecer políticas que regulem o tênue equilíbrio no sistema híbrido[6]. O caráter “saúde para todos” é reconfortante, porém dificílimo de ser aplicado globalmente por conta dos custos envolvidos. O SUS está vinculado a essa vertente.

Desafios na Conciliação

Dois pontos são cruciais no esforço de harmonizar questões comerciais com justiça social:

  • Acesso universal: a lógica de mercado conflita com a ideia de acesso universal e igualitário à saúde. Uma forma intermediária corresponde ao atendimento de duas clientelas distintas: uma proveniente do SUS e outra do Sistema de Saúde Suplementar. Balancear economicamente a prestação da assistência de um e outro grupo é um desafio permanente;

  • Lucro versus necessidade: o Sistema de Saúde Suplementar se encontra estruturado para atender os que optam por pagar. Os prestadores buscam ganhos econômicos e isso é lícito e condizente com aqueles que desejam escolher serviços de assistência à saúde.

Modelos de Conciliação

Existem pelo menos quatro maneiras de harmonizar questões comerciais com justiça social na assistência à saúde:

  • Regulação e financiamento público forte: países como Alemanha e França têm sistemas de saúde financiados por impostos ou contribuições obrigatórias, garantindo cobertura universal enquanto mantêm participação privada;

  • Subsídios e incentivos equilibrados: o Estado pode incentivar o setor privado a atender populações vulneráveis sem comprometer a universalidade do sistema público. Isso pode ser feito por meio de subsídios, parcerias público-privadas e regulação de preços;

  • Limitação da busca pela rentabilidade na saúde essencial: alguns países impõem regras para evitar que a busca por maior rentabilidade prejudique o acesso. O Canadá, por exemplo, proíbe que serviços médicos essenciais sejam explorados comercialmente;

  • Concorrência regulada: em sistemas como o da Holanda, fontes pagadoras privadas competem, mas são obrigadas a aceitar todos os pacientes e oferecer um pacote básico definido pelo governo.

O modelo híbrido implementado no país procura conciliar os princípios de mercado com justiça social. Enquanto o SUS deve propiciar acesso universal, o Sistema de Saúde Suplementar se encontra disponível para aqueles que decidem pagar direta ou indiretamente (pagamento direto ou através de plano de saúde). São estruturas que se superpõem e às vezes concorrem entre si. Consequentemente, tem-se um dilema insuperável, uma vez que é quase impossível estabelecer uma regulação eficiente que favoreça os princípios de justiça social dentro de um ambiente de competição. As parcerias público-privadas, mecanismo apregoado como forma de contribuir com o setor público, tem limites e praticamente atua na melhoria da gestão dos serviços e acesso aos cuidados. Quando adiciona recursos é porque espera ter ganho econômico-financeiro no futuro.

Conclusão

A lógica de mercado não combina espontaneamente com os princípios de justiça social na saúde. É necessário um esforço expressivo para unir a perspectiva social e humanitária com a eficiência, inovação e sustentabilidade econômica dos serviços de saúde. Assim, a conciliação das duas abordagens pressupõe a existência de políticas regulatórias bem estruturadas aplicadas de maneira comedida. O forte envolvimento do governo no financiamento e regulamentação dos cuidados de saúde o habilita a reconhecer o crescente segmento com fins lucrativos. É razoável supor-se que o sucesso seja proporcional à forma e intensidade de como o Estado regula, financia e organiza o sistema como um todo.


[1] Berry, L; Seltman, K. Lições de gestão da Clínica Mayo: por dentro de uma das mais admiradas organizações de serviços de saúde. Porto Alegre: Bookman,2010. 302 p.
[2] Ibidem.
[3] Gray, B (Editor). The new health care for profit: doctors and hospitals in a competitive environment. Washington, D.C: National Academy Press, second edition, oct/1986, 187 p.
[4] A fabricação e comercialização de medicamentos, produtos médicos, assim como de equipamentos médico-hospitalares, sempre foram predominantemente organizados com base em fins lucrativos.
[5] Por conta da sensibilidade existente na assistência à saúde, deve-se evitar a palavra “lucro”. Termos similares devem refletir um enfoque mais ético, focado na qualidade do atendimento e no bem-estar do paciente.
[6] Vaitsman, J; Ribeiro, J; Motta, J (Organizadores). Sistemas híbridos de saúde: uma análise comparada internacional de políticas de proteção e equidade. Rio de Janeiro: CEBES, 2019, 660 p.

 

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