Gestão | 18 de julho de 2025

Prescrição de Materiais Não Cobertos pelos Planos de Saúde e a Recusa de Substitutivos pelos Médicos

Prescrição de Materiais Não Cobertos pelos Planos de Saúde e a Recusa de Substitutivos pelos Médicos

A prescrição de materiais médicos é um dos aspectos essenciais do cuidado à saúde, a fim de que os pacientes recebam os insumos necessários e adequados para seus tratamentos. No entanto, quando esses materiais não são cobertos pelos planos de saúde, impõem obstáculos expressivos tanto para os pacientes quanto para os médicos. Além disso, a recusa dos prescritores em aceitar substitutivos propostos pelas operadoras de planos de saúde (OPS), para materiais originalmente indicados, adiciona outra camada de complexidade no processo assistencial.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)[1] estabelece as regras de cobertura dos procedimentos contratados e define as exclusões permitidas. De acordo com essa legislação, as OPS podem excluir da cobertura apenas órteses, próteses e acessórios não ligados ao ato cirúrgico. Quando esses materiais são indispensáveis para a realização da cirurgia prescrita pelo médico assistente, a negativa de uma operadora pode ser considerada abusiva[2]. A mesma lei também determina que a cobertura dos planos privados de assistência à saúde deve incluir todos os materiais e medicamentos necessários para a realização dos procedimentos cobertos, salvo exclusões expressamente previstas.

Segundo a ANS[3], os planos de saúde devem disponibilizar todos os insumos necessários para a realização dos procedimentos listados. Isso proíbe as operadoras de limitarem a cobertura apenas ao procedimento cirúrgico, excluindo insumos indispensáveis para sua efetivação. Além disso, regula os critérios para análise de cobertura e determina a obrigatoriedade de um parecer técnico em caso de divergência sobre a necessidade de determinado material[4]. Ou seja, as OPS não devem simplesmente negar a autorização. Precisam justificar de forma detalhada e comunicar, por escrito ao paciente, tendo como fundamento a legislação vigente, as cláusulas contratuais e as diretrizes da ANS[5].

Especialidades e OPME solicitados

São recorrentes os conflitos entre as OPS e os médicos quanto à autorização e liberação de órteses, próteses e materiais especiais (OPME) para procedimentos cirúrgicos e intervenções reconstrutivas. Tais impasses decorrem de múltiplos fatores, entre os quais se destacam interesses distintos dos médicos, fornecedores da cadeia produtiva, OPS e, eventualmente, dos próprios beneficiários.

As especialidades médicas que fazem uso mais frequente de OPME estão listadas no quadro a seguir, com exemplos dos principais itens utilizados em cada área.

Quadro das especialidades médicas e OPME mais frequentemente solicitados 

Especialidades

OPME

Cirurgia Cardiovascular

·    Válvulas cardíacas artificiais

·    Stents e enxertos vasculares

·    Marcapassos e desfibriladores implantáveis

Cirurgia Vascular

·    Stents periféricos

·    Próteses vasculares sintéticas

·    Filtros de veia cava

Ortopedia e Traumatologia

·     Substituições articulares (próteses de quadril, joelho, ombro)

·    Fixadores internos e externos (placas, parafusos, hastes)

·    Órteses para correção ou imobilização

Neurologia

·    Próteses de coluna

·    Clipes aneurismáticos

·    Materiais para cranioplastia

Oftalmologia

·   Lentes intraoculares

·    Próteses oculares

Otorrinolaringologia

·    Implantes cocleares

·    Próteses auditivas

·    Tubos de ventilação

Cirurgia Bucomaxilofacial -Odontologia

·    Implantes dentários

·    Placas de reconstrução facial

·    Órteses ortodônticas

Ginecologia

·    Próteses mamárias

·    Telas cirúrgicas para correção de prolapso e incontinência

Urologia

·    Próteses penianas

·    Stents uretrais

Cirurgia Torácica

·    Próteses traqueais ou brônquicas

·    Malhas para parede torácica

Razões da prescrição de materiais não cobertos pelas OPS

A prescrição de materiais cirúrgicos fora do rol padronizado pelas OPS é uma ocorrência frequente. Gera impactos clínicos (descompasso entre a indicação e a real necessidade do paciente), econômicos (elevação dos custos assistenciais) e regulatórios (potenciais conflitos de interesse e descumprimento de normas éticas ou contratuais). Entender os motivos por trás dessa prática é fundamental para desenvolver soluções que alinhem a liberdade médica à sustentabilidade dos sistemas de saúde suplementar.

As principais razões pelas quais os médicos prescrevem materiais não cobertos pelos planos de saúde (ou que possuem similares fornecidos pelas OPS) estão listadas a seguir.

1) Preferência técnica e experiência profissional

Os médicos desenvolvem preferências por determinadas marcas ou modelos de materiais com base em sua experiência prática. A confiança adquirida ao longo dos anos, especialmente em casos complexos, pode levar à escolha de materiais que, embora similares aos padronizados pelas OPS, são considerados mais eficazes ou seguros pelos especialistas[6]. Podem considerar que os materiais não cobertos têm melhor desempenho, durabilidade ou menos risco de complicações, mesmo que haja similar disponível. Adicionalmente, observa-se um fator que agrega diversidade ao cenário: os médicos frequentemente prestam serviços a múltiplos planos de saúde e comumente se deparam com distintas marcas e modelos de OPME, muitas vezes divergentes daqueles com os quais estão habituados a operar. Assim, caracteriza-se uma questão de elevada heterogeneidade, na medida em que reúne fatores subjetivos como a experiência clínica e a preferência individual dos médicos, bem como restrições e diretrizes de natureza econômica.

2) Influências da indústria e relacionamento com fornecedores

Representantes de empresas fornecedoras de materiais frequentemente buscam manter relações próximas e constantes com os médicos. Patrocinam eventos, oferecem demonstrações e vantagens comerciais diretas ou indiretas. Alguns proporcionam treinamento e suporte técnico nos centros cirúrgicos. Isso cria vínculos de confiança com os médicos, o que pode favorecer a prescrição de determinados materiais, em detrimento daqueles oferecidos pelas operadoras[7].

As influências da indústria e o relacionamento entre médicos e fornecedores de OPME configuram um aspecto crítico na cadeia assistencial. Frequentemente, os médicos são expostos a estímulos, diretos ou indiretos, para a adoção de determinados materiais ou marcas, o que pode interferir em sua conduta clínica.

3) Desconhecimento ou falta de acesso às listas de materiais padronizados

A maioria dos médicos não recebe atualização sobre os materiais disponíveis pelas OPS. Em alguns casos, a falta de acesso rápido e objetivo às listas padronizadas dificulta a adesão ao que é ofertado pelo plano[8].

4) Divergências na avaliação clínica

Em situações específicas, o médico pode entender que o material similar padronizado não atende adequadamente às necessidades do paciente, seja por questões anatômicas, alergias, comorbidades ou histórico cirúrgico. Nesses casos, a escolha de um item fora da lista pode ser clinicamente justificada[9].

5) Ausência de protocolos claros e alinhamento com as OPS

A inexistência de protocolos institucionais claros sobre quando e como prescrever materiais fora da padronização contribui para a variabilidade das condutas. A falta de integração entre os prestadores e as operadoras amplia esse distanciamento[10].

6) Pressão por resultados e satisfação do paciente

Em alguns casos, pacientes solicitam materiais “de ponta” após fazerem suas próprias pesquisas ou ouvirem recomendações. Os médicos, buscando satisfazer os pacientes e garantir a melhor percepção de qualidade, podem optar por atender essas demandas mesmo quando existem alternativas similares disponíveis[11].

Medidas para reduzir a prescrição de materiais não cobertos pelas OPS

É necessário o fortalecimento de políticas institucionais de compliance, padronização criteriosa dos materiais disponibilizados e a promoção de processos decisórios mais transparentes e baseados em evidências. Diminuir na medida do possível a prescrição de materiais não cobertos pelos planos de saúde exige uma abordagem estratégica e colaborativa entre médicos, OPS e pacientes. Eis algumas medidas que podem auxiliar nesse sentido:

  • Capacitação médica: realizar treinamentos periódicos para médicos e demais profissionais da saúde para que estejam atualizados sobre os materiais cobertos pelos planos. Isso inclui uma sistemática de workshops, palestras e acesso a guias digitais que listem alternativas de cobertura de OPME.

  • Protocolos padronizados: estabelecer diretrizes clínicas baseadas em evidências para orientar a prescrição de materiais cobertos, evitando escolhas fora da cobertura. A criação de diretrizes clínicas, baseadas em evidências científicas e nas políticas das OPS, ajuda a padronizar as prescrições. Isso evita variações desnecessárias e reduz a indicação de materiais não cobertos.

  • Melhoria na comunicação com os planos: facilitar o acesso dos médicos às listas de materiais cobertos, seja por aplicativos, plataformas digitais ou contato direto com as OPS. Facilitar o acesso dos médicos às listas de materiais cobertos pode ser feito por meio de aplicativos ou plataformas digitais. Algumas operadoras já oferecem ferramentas online para consulta rápida.

  • Educação do paciente: informar os pacientes sobre os materiais disponíveis dentro da cobertura do plano, incentivando a discussão com os médicos antes da prescrição. Informar os pacientes sobre os materiais disponíveis dentro da cobertura do plano pode reduzir surpresas com custos inesperados. Isso pode ser feito através de folhetos informativos, aplicativos dos planos de saúde ou mesmo durante a consulta médica, incentivando uma decisão mais consciente.

  • Análise periódica de prescrições: monitorar dados de prescrição para identificar padrões de uso de materiais não cobertos e desenvolver alternativas. Hospitais e clínicas podem implementar sistemas de monitoramento que analisam padrões de prescrição. Isso ajuda a identificar casos recorrentes de indicação de materiais não cobertos, permitindo ajustes e recomendações para futuras consultas.

Essas iniciativas ajudam a reduzir custos tanto para as OPS quanto para os pacientes. Podem ser aplicadas individualmente ou combinadas para alcançar um melhor alinhamento entre médicos, OPS e pacientes.

Conclusão

A prescrição de materiais não padronizados evidencia a complexidade inerente à interface entre a prática médica, interesses da indústria e diretrizes estabelecidas pelas OPS. Essa prática, embora muitas vezes justificada sob a ótica clínica, pode acarretar impactos financeiros significativos tanto para os planos quanto para os beneficiários, com potencial repercussão sobre o acesso oportuno aos cuidados em saúde.

Para mitigar esses conflitos, torna-se imprescindível o fortalecimento da comunicação entre médicos, operadoras e pacientes, com ênfase na transparência dos critérios adotados para a escolha dos materiais. A adoção de soluções que conciliem qualidade assistencial com viabilidade econômica deve ser incentivada, priorizando alternativas disponíveis na cobertura contratual, desde que não comprometam a segurança e a eficácia do procedimento. O alinhamento entre os diversos agentes envolvidos pode contribuir para a consolidação de boas práticas assistenciais, agenciando um sistema de saúde mais eficiente, sustentável e centrado nas necessidades dos


[1] Presidência da República; Lei nº 9.656 de 03 de junho de 1998. Casa Civil, Subsecretaria para Assuntos Jurídicos. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9656.htm.
[2] Vasconcelos, A. Cirurgias liberada sem material? Saiba o que os planos de saúde omitem. Migalhas, 25/mar/2025. https://www.migalhas.com.br/depeso/427011/cirurgia-liberada-sem-material-saiba-o-que-os-planos-de-saude-omitem
[3] Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Resolução Normativa – RN nº 465 de 24 de fevereiro de 2021. https://www.ans.gov.br/component/legislacao/?view=legislacao&task=TextoLei&format=raw&id=NDAzMw==.
[4] Agência de Vigilância Sanitária. Resolução Normativa – RN nº 424, de 26 de junho de 2017. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/ans/2017/res0424_27_06_2017.html.
[5] Presidência da República. Lei nº 9.656 de 03 de junho de 1998. Casa Civil, Subsecretaria para Assuntos Jurídicos. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9656.htm.
[6] Santos, E; Andrade, F; Pinto, R. Preferências de médicos na escolha de dispositivos médicos: uma análise qualitativa. Revista Brasileira de Saúde Coletiva, 25(4), 1238-1246, 2020.
[7] Lima, M; Ferreira, J. A influência da indústria de dispositivos médicos na prescrição de materiais. Revista Brasileira de Políticas Públicas de Saúde, 9(1), 34-41, 2019.
[8] Oliveira, T; Silva, H; Cunha, A. Acesso à informação e prescrição de materiais hospitalares. Revista de Administração em Saúde, 20(3), 45-53, 2018.
[9] Rocha, D; Martins, C. Critérios clínicos para escolha de materiais cirúrgicos em procedimentos ortopédicos. Arquivos de Medicina, 34(2), 67-75, 2022.
[10] Carvalho, L. Protocolos assistenciais e padronização de materiais: desafios da integração entre prestadores e operadoras. Revista de Gestão em Saúde, 6(2), 88-95, 2017.
[11] Vieira, P; Souza, M. Expectativas dos pacientes e o papel do médico na indicação de tecnologias de saúde. Revista BioSaúde, 10(1), 55-62, 2020.

 

VEJA TAMBÉM