Gestão | 22 de novembro de 2025

Decisões Técnicas e Escolhas Políticas: Convergências e Implicações no Setor Saúde

Decisões Técnicas e Escolhas Políticas Convergências e Implicações no Setor Saúde

O setor saúde caracteriza-se por sua complexidade organizacional e coexistência de múltiplas racionalidades. Entre essas destacam-se a técnica, a política e a econômica, as quais se encontram fortemente interligadas. É ilusória a separação absoluta entre decisões técnicas e escolhas políticas, já que o conhecimento científico e os parâmetros técnicos não são neutros na medida em que carregam implicações distributivas e valorativas[1]. Adicionalmente, questões de saúde são temas sempre defendidos com muita paixão e apelo humano.

De modo geral, os indivíduos estão preparados para abordar situações que surgem no cotidiano como se fossem apenas desafios técnicos, relegando a dimensão política a uma condição secundária. Adicionalmente, interpretam-na como uma intromissão indevida e não como parte constitutiva das decisões humanas. Profissionais experientes e bem-sucedidos, entretanto, reconhecem a inseparabilidade entre o técnico e o político, e não se afligem com a natural imprecisão das soluções. Ou seja, na prática diária todo ato técnico é, implicitamente, político[2].

Dimensão técnica: fundamentada em evidências, parâmetros e protocolos

As decisões técnicas, por princípio, fundamentam-se em evidências científicas e parâmetros de eficácia. Pressupõem a existência de conhecimento e treinamento consistentes e o domínio de metodologias que assegurem qualidade, segurança e efetividade das intervenções em saúde. Constitui a base para os protocolos clínicos, diretrizes terapêuticas e aplicação de estratégias de gestão em saúde.

Nesse sentido, a dimensão técnica está vinculada à medicina baseada em evidências (MBE)[3], que se consolidou como um dos principais paradigmas contemporâneos de tomada de decisão clínica e organizacional. A MBE não se limita à aplicação de resultados de ensaios clínicos ou revisões sistemáticas, mas implica na integração entre a experiência e a melhor evidência disponível, assim como valores e preferências dos pacientes[4].

Além do campo clínico, a dimensão técnica também se expressa nos processos de avaliação de tecnologias em saúde (ATS), que oferecem subsídios para a incorporação, monitoramento e exclusão de procedimentos, medicamentos, dispositivos e práticas assistenciais nos sistemas de saúde[5]. A ATS orienta a racionalização do uso dos recursos, buscando alinhar qualidade assistencial, eficácia comprovada e sustentabilidade econômica. Outro ponto relevante é a utilização de parâmetros e indicadores de desempenho que permitam monitorar a efetividade das ações em saúde.

Quando os aspectos técnicos predominam sobre os políticos e econômicos no setor saúde, geralmente se destacam os seguintes componentes:

  • Centralidade da técnica: as decisões são tomadas com base quase exclusiva em protocolos, diretrizes clínicas, evidências científicas e inovação tecnológica, sem considerar de forma equilibrada os impactos financeiros ou as negociações políticas necessárias para a implementação. As consequências positivas habitualmente são avanços na qualidade assistencial, incorporação de práticas baseadas em evidências, padronização de processos e maior segurança para o paciente.

  • Riscos e efeitos adversos: o predomínio dos aspectos técnicos sempre ameaça a sustentabilidade institucional[6], fragiliza o domínio político e institucional[7] e pode intensificar o desalinhamento com as necessidades sociais[8].

A supremacia da racionalidade técnica frequentemente dá maior precisão clínica e eleva a qualidade do cuidado, porém aumenta o risco de perder viabilidade econômica e legitimidade política[9], tornando-se frágil diante das pressões externas e insustentável no longo prazo.

Dimensão política: moldada pela governança, regulação e priorização de interesses

A construção de consensos, definição de prioridades e alocação de recursos de acordo com as pressões de interesses são eventos relacionados com a dimensão política de decisão em saúde. Na maioria das vezes, a escolha final de decisões depende de processos políticos de deliberação, negociação e disputa.

A política é o espaço em que diferentes atores – governo, gestores, prestadores de serviços, profissionais de saúde e sociedade civil – disputam poder e legitimidade[10] em função dos interesses em jogo. Ela interfere no sentido de resolver questões impostas pela dimensão técnica (o que é eficaz) ou econômica (o que é viável). Não havendo essa mediação, eleva-se demasiadamente o risco de decisões fragmentadas ou soluções que privilegiem apenas as preferências de alguns em detrimento da coletividade.

A dimensão política está associada, portanto, à governança em saúde, que envolve mecanismos institucionais de participação, regulação e transparência. Essa perspectiva é particularmente relevante em sistemas públicos universais, como o SUS, que dependem da articulação entre instâncias governamentais, controle social e pactos federativos[11].

A ascendência dos aspectos políticos sobre os técnicos e econômicos na gestão das ações de saúde – como no âmbito governamental – pode levar à ocorrência dos seguintes fenômenos:

  • Priorização de interesses de grupos sobre necessidades coletivas: decisões podem atender a demandas de categorias profissionais, partidos políticos, lideranças locais ou prestadores com mais influência, em detrimento de critérios de equidade, qualidade e eficácia.

  • Comprometimento da sustentabilidade: a ausência de balizas técnicas e econômicas pode gerar gastos descontrolados, como o credenciamento de serviços desnecessários, contratação de prestadores sem critérios claros ou incorporação de tecnologias de alto custo sem comprovação de efetividade.

  • Fragilização da legitimidade institucional: beneficiários, profissionais de saúde e gestores perdem confiança quando percebem que as decisões não seguem parâmetros técnicos ou de justiça distributiva, mas arranjos políticos circunstanciais.

  • Baixa eficiência e desperdício: um exemplo é a expansão de serviços em regiões já saturadas (leitos, laboratórios de análises clínicas, serviços de imagens e assim por diante), enquanto outras áreas permanecem desassistidas.

  • Distorções nos cuidados oferecidos: pode haver indução de práticas que favoreçam determinados prestadores ou fornecedores, sem relação com os melhores resultados em saúde para os pacientes.

  • Risco de instabilidade institucional: mudanças frequentes de rumo, conforme a correlação de forças políticas, enfraquecem a continuidade das políticas e programas.

Quando a dimensão política domina, sem o devido contrapeso das racionalidades técnica e econômica, as ações de saúde correm grave risco de se tornarem instrumentos de disputa de poder, em vez de garantidoras do direito à saúde e da sustentabilidade do sistema. A estrutura da relação se dá a partir dela e, primordialmente, desconsidera a primeira lição da economia – os recursos são escassos diante das necessidades humanas, que são ilimitadas – ou seja, não é possível produzir ou oferecer tudo o que as pessoas desejam.

Dimensão econômica: limitada por custos, eficiência e sustentabilidade

Nenhuma decisão técnica ou escolha política é viável sem considerar as possibilidades econômicas. O financiamento insuficiente, a pressão por incorporação de novas tecnologias e o aumento da demanda por serviços tornam inevitável a mediação entre técnica, política e economia[12].

Quando os aspectos econômicos predominam sobre os técnicos e políticos na condução das instituições de saúde, alguns efeitos típicos podem ser observados:

  • Foco excessivo na redução de custos: prioriza-se a contenção de despesas em detrimento da qualidade da assistência, levando a cortes de insumos, equipes enxutas demais ou restrição de acesso aos cuidados assistenciais.

  • Iniquidades no acesso: pacientes com maior poder aquisitivo ou planos mais rentáveis recebem mais atenção, enquanto populações vulneráveis podem ser negligenciadas.

  • Medicalização e mercantilização do cuidado: a saúde passa a ser tratada como mercadoria, com ênfase em procedimentos mais lucrativos, ainda que não sejam os mais necessários para os pacientes.

  • Desvalorização do trabalho em saúde: profissionais podem ser submetidos a remuneração inadequada, sobrecarga ou vínculos precários, impactando motivação e qualidade assistencial.

  • Tecnologia como atrativo econômico: investimentos são feitos em tecnologias que trazem retorno financeiro ou marketing institucional, e não necessariamente maior resolutividade clínica.

  • Risco de perda da finalidade pública: a lógica de mercado pode se sobrepor ao princípio do cuidado integral, transformando o paciente em consumidor e a saúde em um serviço mercantil.

Quando uma racionalidade se sobrepõe às demais, surgem distorções e fragilidades institucionais. O equilíbrio entre o técnico (o que é possível segundo evidências, ciência ou boas práticas), político (o que é viável em termos de apoio, interesses, ideologias e negociações) e a economia (o que é sustentável ou financiável com os recursos disponíveis) é essencial para a boa governança em saúde. Essa tríade se encontra em permanente tensão. Uma solução tecnicamente perfeita pode ser politicamente inviável; uma proposta politicamente popular pode ser economicamente insustentável e uma medida economicamente eficiente pode não atender às demandas sociais ou técnicas.

Aparentemente, as decisões institucionais parecerem “imperfeitas” porque resultam da conciliação entre as três dimensões, sendo raramente possível otimizar todas ao mesmo tempo.

Conclusão

As decisões institucionais no setor saúde carregam, inevitavelmente, um caráter de “imperfeição”. Isso ocorre porque resultam da necessidade de conciliar racionalidades distintas – técnica, política e econômica – que, embora complementares, muitas vezes se apresentam em tensão. A otimização simultânea dessas dimensões raramente é possível, o que exige escolhas estratégicas e pactos de governança que reconheçam limites e potencialidades. Mais do que buscar soluções ideais, trata-se de construir arranjos viáveis e sustentáveis, capazes de equilibrar eficiência técnica, legitimidade política e responsabilidade econômica, sem perder de vista a centralidade do cuidado em saúde.


[1] Fleury, S; Ouverney, A. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella, L. et al. (Org.). Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007.
[2] Harris, D; Batley, R; Wales, J. The technical is political: what does this mean in the health sector? Research report, April 4, 2014. https://odi.org/en/publications/the-technical-is-political-what-does-this-mean-for-the-health-sector/.
[3] Pinheiro, M; Nogueira, R. Medicina baseada em evidências: uma interpretação crítica e implicações para as políticas públicos. Brasília: IPEA, set/2021.
[4] Ibidem.
[5] Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes metodológicas: elaboração de pareceres técnico-científicos. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
[6] A ênfase em procedimentos de alta complexidade, novos medicamentos e tecnologias pode gerar custos crescentes, inviabilizando economicamente as operadoras de planos de saúde.
[7] A ausência de diálogo com atores políticos e gestores pode levar ao isolamento, dificuldades de governança e baixa capacidade de articulação.
[8] O foco excessivo no “ideal técnico” distancia as organizações de saúde das demandas reais da população, das prioridades de saúde pública e do acesso.
[9] Similar ao conceito do “triângulo de ferro”, que considera a interdependência entre custo, qualidade e acesso, quando predomina uma das três dimensões, as outras duas são comprometidas, a menos que haja um aumento expressivo na eficiência, o que é incomum no setor saúde.
[10] Dahl, R. Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp, 1997.
[11] Paim, J. O que é o SUS. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2018.
[12] Giovanella, L; Mendes, A. Financiamento da saúde no Brasil: limites históricos e desafios atuais. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, n. 4, p. 1445-1458, 2021.

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