Quinto Neto é um dos principais percursores do modelo de acreditação no Brasil. Em sua coluna, aborda assuntos como as certificações de qualidade em saúde, o sistema de saúde brasileiro e a segurança do paciente.
A Improvável Redução de Custos na Assistência à Saúde
A concepção de que é possível reduzir expressivamente os custos na assistência à saúde se consolidou como um mito ao longo das últimas décadas. Esse conceito ganhou força a partir de políticas públicas, avanços tecnológicos e discursos de eficiência (administrativa e assistencial) que prometiam soluções para conter o aumento dos gastos no setor. Infelizmente, ainda não se conseguiu provar, de maneira irrefutável, essa suposição. Mesmo assim, defende-se reiteradamente que a eficiência, as novas tecnologias e a medicina preventiva são capazes de reduzir custos. Há quem afirme o seguinte: se você acredita em redução de custos na assistência à saúde, provavelmente você também acredita em unicórnio, monstro do Lago Ness e no Pé Grande vagando pelo noroeste do Pacífico [1].
A Eficiência como Solução
Há mais de 40 anos alimenta-se a tese de que é necessário reduzir custos na assistência à saúde e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade, o que na prática se constitui um oxímoro. A história da maioria dos hospitais habitualmente é de déficits financeiros de longo prazo e risco de falência [2] e com frequência necessitam de auxílio governamental. Isso deve significar alguma coisa. Quem atua cotidianamente no setor, reconhece que deve ser melhorada a eficiência, mas não se acredita que isso levará a redução de custos, ou que esta, se ocorrer, será vigorosa e enfática. Além disso, em todo o mundo os gastos com saúde crescem acima da inflação, cerca de duas vezes acima da média anual, sendo essa situação ainda mais grave no Brasil[3].
No início da década de 1990, William Kissick publicou o livro Dilemas da Medicina: necessidades infinitas versus recursos finitos onde expôs o conceito de triângulo de ferro[4] na assistência à saúde. Trata-se de uma metáfora que representa os dilemas e tensões inerentes à gestão de serviços e sistemas de saúde, onde os três vértices – custo, qualidade e acesso – se encontram em permanente interação. Qualquer mudança em um vértice tende a influenciar os outros dois, criando assombrosos desafios para gestores, formuladores de políticas e prestadores de serviços. Uma dedução óbvia do triângulo de Kissick reside no fato da impossibilidade de alcançar simultaneamente baixo custo, alta qualidade e maior acesso. A exígua margem de manobra permitida pela tríade faz com que os gestores diariamente convivam com este impasse[5]. Medidas como digitalização de prontuários, telemedicina e melhores processos “seguram” alguns custos, mas não conseguem domar o perigoso rinoceronte cinza[6] do crescimento dos gastos.
A saúde não é um setor linear onde a aplicação dos princípios de eficiência econômica pode ser facilmente traduzida em redução de custos. O cuidado com os pacientes é altamente variável e depende de inúmeros fatores imprevisíveis, como gravidade da doença, comorbidades e respostas individuais ao tratamento, além de variadas condutas médicas e possibilidades de atendimento oferecidas pelos estabelecimentos de saúde. A demanda por serviços também pode variar de forma brusca (epidemias, surtos, desastres), tornando difícil a otimização dos recursos.
A busca por melhor eficiência se encontra em todos os sistemas de saúde[7]. Conquanto as inúmeras métricas utilizadas tenham limitações, elas precisam ser incorporadas em todas as funções relevantes de prestação de serviços e formulação de políticas.
A Falsa Expectativa com o Avanço da Tecnologia
A evolução da tecnologia na medicina trouxe equipamentos mais precisos, exames sofisticados e tratamentos inovadores. No entanto esses avanços não reduziram os custos; pelo contrário, os encareceram. Novos procedimentos e terapias personalizadas demandam altos investimentos em pesquisa, infraestrutura e profissionais qualificados, tornando o ambiente mais caro. As terapias oncológicas e imunoterápicas, assim como a cirurgia robótica, são exemplos que destacam os benefícios médicos, mas que encarecem a assistência.
Na atualidade se observa uma aclamação da saúde digital como a nova panaceia para alguns dos problemas mais intratáveis na área da saúde[8]. Embora essa tecnologia se encontre na infância, seus proponentes argumentam que o futuro será de intervenções mais precisas, melhores resultados de saúde, maior eficiência e, finalmente, redução dos gastos com saúde. Apesar das contribuições substanciais para a melhoria dos resultados em saúde, são raros os exemplos de efeitos de redução de custos. Uma razão óbvia é que os avanços tecnológicos tendem a ser caros. Mesmo que essas tecnologias se mostrem econômicas na média, ainda se espera que aumentem os gastos com saúde, porque os métodos de análise de custo-efetividade estabelecem um valor monetário para a saúde e a vida com base na disposição de pagar por isso[9].
O uso de soluções tecnológicas bem projetadas e testadas levará a uma melhor correspondência de recursos com a complexidade das tarefas e isso trará maior produtividade. A automação e a simplificação permitem que os humanos façam coisas que de outra forma não conseguiriam, ou pelo menos não na mesma medida ou com a mesma qualidade[10]. Um algoritmo capaz de efetuar diagnósticos mais rápidos ou melhores do que a maioria dos médicos pode levar a redução no preço de um serviço específico, mas no geral não será eloquente.
A ciência da economia destaca que o mercado de saúde tende ao desequilíbrio quando a demanda continuada excede a oferta e o uso. Nesse cenário, a redução do preço de um determinado serviço invariavelmente conduz a um aumento na quantidade demandada. Dado que a despesa total é igual à quantidade demandada multiplicada por seu preço, a introdução de tecnologias de baixo custo pode, paradoxalmente, levar a um aumento geral das despesas[11]. Em outras palavras, os usos médicos de novos tratamentos são aumentados por meio do atendimento a uma demanda não atendida, e essa expansão induz um aumento líquido nos gastos.
Vale destacar alguns aspectos observados no setor saúde:
– Na maioria dos sistemas de saúde, o custo dos serviços assistenciais é pago total ou parcialmente por operadoras/seguradoras de planos de saúde ou governos, que não ganham diretamente com as intervenções pelas quais estão pagando. O aumento do uso de tecnologias digitais e a questão de como financiá-las gera continuamente reptos para os gestores das fontes pagadoras. Adicionalmente, a crença de que as novas tecnologias trarão aos pacientes melhor acesso e maior variedade de serviços de saúde é sedutora. Isso encoraja a conduta impulsiva em adotá-las rapidamente, sem qualquer cálculo dos custos que advirão dessa incorporação;
– Parece ser verdadeira a suposição que os gastos com tecnologia aumentam a eficiência e aceleram o crescimento, mas não reduz custos, uma vez que a tecnologia cresce mais rápido que a base de custos em geral[12];
– Os custos iniciais para desenvolver e implementar tecnologias de saúde são elevados (desenvolvimento de plataformas digitais, compra e manutenção de equipamentos, treinamento de profissionais e integração de sistemas). Geralmente os gastos demoram anos para serem recuperados, o que torna o impacto econômico incerto e distante do ponto em que se efetuou o investimento;
– Soluções digitais requerem manutenção contínua e atualizações para garantir segurança e eficiência e isso representa um custo adicional permanente;
– São necessários investimentos expressivos em segurança digital para evitar vazamentos de dados sensíveis. O custo associado à proteção, além das penalidades em casos de violação de dados, pode ser maior do que o benefício econômico esperado;
– A digitalização pode reduzir a necessidade de médicos e enfermeiros, mas gera demanda por novos especialistas em tecnologia da informação e análise de dados, cujo custo de contratação e formação pode ser elevado;
– A telemedicina reduz custos em consultas de rotina, porém setores mais complexos, como cirurgias ou cuidados intensivos, continuam a exigir investimentos robustos em infraestrutura física, equipamentos, materiais e medicamentos.
A Ilusão da Medicina Preventiva como Redução de Custos
A medicina preventiva é frequentemente exaltada como uma solução para reduzir os custos crescentes dos sistemas de saúde. Políticas públicas e programas de prevenção visam evitar doenças crônicas e minimizar intervenções mais onerosas no futuro. Essa abordagem, conquanto importante para a promoção da saúde e da qualidade de vida, na maioria das vezes não se traduz em economia financeira. É uma ilusão considerar-se que a medicina preventiva se constitui em um mecanismo automático de contenção de custos.
Campanhas de vacinação, exames preventivos e incentivo a hábitos saudáveis podem reduzir internações e complicações de certas doenças. No entanto, isso não necessariamente se traduz em economia. Uma análise de custo da adoção de um pacote de 20 serviços preventivos comprovados[13] – incluindo triagem para cessação do tabagismo, triagem para abuso de álcool e uso diário de aspirina – identificou que o maior uso de serviços preventivos clínicos evitaria a perda de anos de vida. O atendimento estimado de 90% da população dos EUA mostrou que essa iniciativa geraria uma economia de cerca de 0,2% dos gastos com assistência médica pessoal, o que representaria uma contração irrisória[14]. Ou seja, as medidas preventivas aumentam a expectativa de vida, mas não produzem economia expressiva.
A medicina preventiva é fundamental para construir sociedades mais saudáveis e reduzir o sofrimento humano. Às vezes se apresenta com um apelo moral e ético otimista e afirmativo de que ações preventivas são desejáveis e necessárias[15]. No entanto, a ideia de que ela, por si só, reduz custos precisa ser corrigida. Políticas de saúde devem ser desenvolvidas com base em evidências científicas sólidas, focando em resultados para a saúde da população e não apenas em supostas economias financeiras. Há bons argumentos para aumentar o foco na prevenção, mas quase todas as iniciativas têm a ver com a melhoria da qualidade de vida, na maioria das vezes com aumento e não redução de gastos.
Conclusão
É uma lenda a ideia da redução global de custos na assistência à saúde. O desenvolvimento de novas tecnologias e o avanço das práticas preventivas são aspectos essenciais para a evolução dos sistemas de saúde. Resta a esperança de que políticas de saúde pública e modelos de gestão eficientes possam ajudar na mitigação do impacto dos custos crescentes. A realidade clama por mais conhecimento que permita o controle de custos em um nível socialmente aceitável, e assegure qualidade e acesso compatível com as necessidades da população. Há indícios que é preciso, necessariamente, elevar o poder aquisitivo para que haja mais saúde e melhor qualidade de vida.
[2] Walters, K; Sharma, A; Malica, E; Harrison, R. Supporting efficiency improvement in public health systems: a rapid evidence synthesis. BMC Health Serv Res. 2022;22:293.
[3] Carneiro, L. Inflação médica. IESS, maio de 2016.
[4] Kissick, W. Medicine Dilemmas: infinite needs versus finite resources. New Haven and New London, CT: Yale University Press, 1994.
[5] Tchatchoua, J. Strategies for improving healthcare efficiency while reducing costs. Walden University 2018. chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://scholarworks.waldenu.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=6415&context=dissertations.
[6] Wucker, M. O rinoceronte cinza: como reconhecer os riscos óbvios que ignoramos e agir de maneira eficaz. São Paulo: Citadel, 2021, 368 p.
[7] Cylus, J; Papanicolas, I; Smith, C. A framework for thinking about health system efficiency. In: Cylus J, Papanicolas I, Smith C, editors. Health system efficiency: How to make measurement matter for policy and management [Internet]. Copenhagen (Denmark): European Observatory on Health Systems and Policies; 2016. Health Policy Series, No. 46. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK436891/.
[8] Rahimi, K. Digital health and the elusive quest for cost savings. Lancet Digital Health, vol 1, July 2019. www.thelancet.com/digital-health.
[9] Drummond MF, Sculpher MJ, Torrance GW, O’Brien BJ, Stoddart GL. Methods for the economic evaluation of health care programmes, 3rd edn. Oxford: Oxford University Press, 2005.
[10] Rahimi, K. Digital health and the elusive quest for cost savings. Lancet Digital Health, vol 1, July 2019. www.thelancet.com/digital-health.
[11] Rahimi, K. Digital health and the elusive quest for cost savings. Lancet Digital Health, vol 1, July 2019. www.thelancet.com/digital-health.