Gestão, Qualidade Assistencial | 5 de fevereiro de 2019

A Ciência e a Arte de Liderar e Gerenciar Médicos (Parte 2/3)

A Ciência e a Arte de Liderar e Gerenciar Médicos Parte 2 de 3

Necessidade de Ajuste à Nova Realidade

Nos últimos 15 anos a vertiginosa celeridade das mudanças no setor saúde alterou drasticamente a atmosfera da assistência médico-assistencial. A remuneração dos médicos tornou-se mais restrita (e os indícios assinalam que essa tendência continuará ativa), o pagamento efetuado pelas fontes pagadoras passou a ser predominantemente através de pacotes, os registros eletrônicos médico-assistenciais adquiriram o status de obrigatoriedade, as exigências regulatórias impostas pelo poder público (secretarias de saúde das três instâncias de governo e Ministério Público) ampliaram-se, a monitorização da conformidade das ações assistenciais e administrativas passaram a ser avaliadas e controladas por agências externas de certificação da qualidade e segurança. Tudo isso tem suscitado enorme pressão sobre os médicos que experimentam um atordoamento geral diante de um cenário que estreita a autonomia profissional e, ao mesmo tempo, eleva o risco de autuação judicial pelos agentes governamentais. Isso decorre da evolução transformadora e disruptiva que vem ocorrendo no setor saúde. O que é problemático é não reconhecer que o cenário está mudando. Não reconhecer isso impede que os médicos se recondicionem para um novo ambiente que solicita, paradoxalmente, mais flexibilidade em suas ações estritamente individuais e maior cumprimento de padrões baseados em evidência.

Os médicos que desejam contribuir de forma expressiva e consequente com as organizações nas quais operam, precisam ser treinados em liderança e gestão. O quadro 1 apresenta os domínios e os temas mais frequentes que na atualidade não se relacionam totalmente com o conhecimento médico aprendido.

Quadro 1: Domínios e temas específicos de interesse dos médicos líderes e gestores.

Domínios Temas Específicos
1) Paciente ·   Segurança do paciente.

·   Relacionamento com o paciente.

·   Satisfação do paciente.

·   Melhoria da segurança, qualidade e experiência do paciente.

2) Organização e gestão da prática médico-assistencial ·  Volume e registro dos atendimentos realizados.

·  Gestão de agenda (consultas, exames, aplicações, cirurgias).

3) Relacionamento/comportamento dos médicos ·   Relações entre os médicos.

·   Relações entre médicos e demais profissionais de saúde.

·   Resolução de litígios.

4) Variabilidade médico-assistencial excessiva ·  Desenvolvimento de mecanismos para melhorar a prestação da assistência clínica.

·  Estimulo ao desenvolvimento de protocolos.

5) Compatibilização das necessidades da organização com as necessidades dos médicos ·  Articulação entre a administração e os representantes dos grupos médicos.

·  Engajamento/alinhamento dos grupos médicos com as iniciativas da organização de saúde.

·  Reconhecimento e promulgação de mudanças na prestação da assistência.

·  Comunicação.

·  Recrutamento e retenção de médicos.

O Estilo “médico-herói”

A formação médica, centrada no diagnóstico e tratamento, entremeada por alguns pontos de humanismo no cuidado, engendra profissionais com um tipo de comportamento que alguns autores denominam de estilo “heroico”[1]. Essa forma de atuação, na atualidade, contrapõe-se ao estilo multiprofissional/institucional exigido pela complexidade dos serviços de saúde.

O quadro 2 expõe, de forma breve, o comportamento do estilo “médico-herói”, a descrição das consequências e os resultados relacionados à gestão dos recursos utilizados nos cuidados de saúde.

Quadro 2: Comportamento do “médico-herói”, caracterização e resultado[2].

Comportamento Caracterização Resultado
1) Controla quase todos os aspectos do cuidado do paciente ·   O tempo de ciclo das decisões torna-se inteiramente dependente da disponibilidade do médico.

·   Tudo depende dele e os demais membros da equipe não podem fazer nada sem sua estrita aprovação antecipada.

·   Não aceita e não cumpre protocolos assistenciais.

·   Habitualmente o médico demonstra uma responsabilidade pessoal implacável em relação aos cuidados prestados ao paciente.

·  Paciente fica à mercê da disponibilidade estrita do médico.

·  Eleva-se a chance do paciente não receber os cuidados que necessita no momento em que precisa.

·  Os demais membros da equipe de saúde se sentem contidos em ações que poderiam beneficiar o paciente.

2) Sobrecarrega as organizações de saúde com redundâncias e ineficiências, em vista do esforço que despende para compensar a sua incapacidade de estar disponível 24 horas/7 dias ·   Esse padrão reforça práticas não baseadas em evidências e estimula a prática de encaminhamentos de forma errática. ·  Contribui para o desperdício e ineficiência.

·  O paciente recebe um atendimento menos qualificado e mais arriscado.

3) É exigente e intolerante com os demais profissionais que o circundam (provavelmente pela pressão e responsabilidade que coloca sobre si mesmo) ·   Essa conduta habitualmente cria situações incontornáveis de conflito entre o médico e os demais membros da equipe de saúde. ·  Aumenta a rotatividade de colaboradores insatisfeitos com a forma como são tratados pelo médico.

·  Aumenta os custos com pessoal.

4) Cria um ambiente no qual a equipe é impedida de aprender processos de gerenciamento padronizado para uma condição específica ·   Cada médico, de acordo com a sua vontade, define os processos a serem realizados, em detrimento das normas institucionais. ·  Alimenta a variabilidade na utilização de espaços, equipamentos, materiais e medicamentos, elevando custos para a organização de saúde.

·  Desconsideração pela interdisciplinaridade.

5) Não reconhece os efeitos do seu comportamento sobre os demais profissionais e sobre a organização de saúde como um todo ·   Na busca de prestar o melhor cuidado para o paciente em tempo real, o médico tende a não reconhecer o efeito que o seu padrão de prática tem sobre os recursos da organização de saúde. ·  Falta de padronização das atividades.

·  Falta de protocolos.

·  Descompromisso dos demais membros da equipe de saúde.

6) Impede que a organização de saúde capitalize a inteligência coletiva que as equipes trazem para o cuidado ·   Equipes diversificadas e efetivas não têm chances de desenvolver novas soluções para problemas identificados na prática diária. ·  Obstáculos à melhoria de resultados assistenciais e redução de custos.

Em suma, as organizações de saúde que conservam predominantemente o estilo do “médico-herói”, não conseguem reduzir a excessiva variabilidade das condutas diagnósticas e terapêuticas, nem implantar protocolos assistenciais, assim como encontram dificuldades em cumprir exigências legais regulatórias. Em outras palavras, são organizações aprisionadas ao que se poderia denominar de “nível zero” de desenvolvimento organizacional.

As organizações de saúde precisam, mais do que em outras épocas, de médicos treinados e capacitados em liderança e gestão. Para isso é necessário oferecer treinamento facilitado, principalmente para os que assumem cargos de comando, a fim de que sejam líderes eficazes e gestores consequentes, contribuindo, de forma expressiva, para a melhoria dos locais onde atuam.

Nota: O próximo artigo delineará as ações necessárias para que os médicos liderem de forma consequente as atividades médicas, e sejam capazes de gerenciar com técnica as ações e serviços de saúde.

[1]Nurok, M; Sundt, T; Gewertz, B. The adverse impact of the physician-hero. May 24, 2018. https://catalyst.nejm.org/adverse-physician-hero-team-based-care/. Acessado em 04/jan/2019.
[2]Quadro elaborado a partir do texto de Nurok et alli.

Leia o post 1/3 aqui

 

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