A enfermagem e seus mitos
Estamos em pleno Século XXI, iniciando um novo ano, que chega de mansinho trazendo muita esperança e a sensação de que tudo será melhor. Erros do ano que passou não se repetirão em 2014, o aproveitamento do tempo sem dúvida será melhor e principalmente muitas coisas se renovarão e teremos tempo para pensar um pouco mais na nossa qualidade de vida. Teremos mais sabedoria para enfrentar os obstáculos que possam surgir em nosso caminho, reconhecendo que a cada passo de nossas vidas, encontramos modos de aprender e cada pessoa com quem nos relacionamos oferece esta oportunidade. Impressionante que todos os anos a cena se repete em nossas vidas, seja no âmbito pessoal ou no profissional.
Na área profissional temos sempre a preocupação de fazer o melhor. Como professora que sou, fico me perguntado o que posso fazer mais para melhorar a formação de novos enfermeiros? Formar profissionais capazes de se tornarem sujeitos de transformação, perceber-se como um ser racional, que não se restringe à adaptação, mas que luta por mudanças e pela superação de condutas enraizadas. Será sonho ou realidade? É possível? Tenho certeza que depende exclusivamente de nós, enfermeiros, do valor que atribuímos a profissão que escolhemos. Temos que ter bem claro em nossa mente a necessidade da construção de uma consciência política partindo da socialização, formação, compreensão e organização dos enfermeiros entre seus pares. É, definitivamente, lutar para que a força e prevalência dos acontecimentos do passado deixem de refletir sobre a profissão. Falando em passado, um dia desses me deparei a ler um artigo escrito em 1975 por Wanda de Aguiar Horta, enfermeira e professora da Escola de Enfermagem da USP, uma das grandes teoristas da Enfermagem, com quem tive o prazer de conhecer e participar de um curso ministrado por ela, passando a admirá-la ainda mais. O artigo se refere aos “Mitos da Enfermagem”, e a medida que ia lendo me deparava com fatos que até hoje estão presentes na visão social da nossa prática, apesar de já ter transcorrido 38 anos. Os dicionários nos dizem que mito é “tradição que sob forma alegórica deixa entrever um fato natural, histórico ou fifosófico”, no sentido figurado “coisa que não tem existencia real, coisa em que não se crê, tradição popular que surge entorno de algo ou alguém, utopia”. Sabemos que no percurso histórico da enfermagem, uma série de mitos foi surgindo, alguns com saldo positivo, outros negativos, mas que foram construindo uma imagem social da profissão.
Vejamos o que Horta escreveu sobre os principais mitos da enfermagem:
Enfermeira-dama de caridade: “a enfermeira chega em sua unidade de serviço, distribui sorrisos bondosos, perdoa os humildes, dá conselhos, tira do seu próprio bolso recursos financeiros para ajudar os outros, faz tudo para dar objetivo aos seus anseios de caridade”. Isso nos remete a exclamações populares, tais como “a enfermagem é um sacerdócio, um apostolado, são uns anjos”. Quem já não ouviu esse tipo de exclamação?
Enfermeira-ajudante de médico: “o enfermeiro é visto como um ajudante do médico, seu braço direito, o executor de suas ordens, é uma profissão auxiliar ao médico. Diz ela, “ainda se compreende que este mito exista entre pessoas não orientadas, o mais lamentável é vê-lo entre os próprios profissionais. O enfermeiro portador dessa crença é logo reconhecido, a qualquer pergunta do paciente ele responde – vou falar com o seu médico; foi o médico que mandou, etc”. Constatamos fatos semelhantes em nossa prática diária?
Enfermeira – executora de técnica: “o enfermeiro logo diz – não reparem nas técnicas, aqui não é como na escola, falta tudo e temos que improvisar; outro indicio é a existência, na sala de serviço, de uma série de bandejas numeradas com o material para execução de todas as técnicas possíveis e imagináveis. Tudo é feito tendo por finalidade única técnicas bem executadas”. A supervalorização do conhecimento da execução de técnicas como o principal objetivo da enfermagem, principalmente a utilização e controle do material, sustentado pelo ensino, é o que tem nutrido este mito.
Falta de tempo: “é a queixa mais frequente, nada é feito porque não há tempo. O processo de enfermagem não é aplicado porque perde-se muito tempo e ele é escasso. Poderíamos perguntar qual o enfermeiro que faz diariamente um plano de trabalho por escrito, e o avalia no final do dia? O que fiz, porque fiz, porque não o fiz, quais os fatores intervenientes? Somente com esta análise pode ou não ser confirmado o mito”. É mais do que provado que trabalhar com planejamento traz resultados mais satisfatórios. Por que a dificuldade de se trabalhar com planejamento?
Falta de apoio, “status”, estrutura: “o enfermeiro não faz ou introduz novos conhecimentos em sua prática dizendo ser impossível por falta de ‘status’, ou apoio da administração ou por causa da estrutura da instituição. Não adianta insistir porque ninguém reconhece nosso trabalho, a administração cerceia a nossa liberdade”. Tem como negar este mito?
Esses e muitos outros mitos, tanto relacionados com a profissão, com o exercício e o ensino, podíamos escrever. Mas me propus a destacar esses, escritos por Horta (1975), que estão ainda muito presentes na prática da enfermagem. O objetivo do texto é motivar o profissional enfermeiro a refletir sobre a visão social da profissão, e questionar até quando os mitos carregados de estereótipos ultrapassados na dinâmica do tempo continuarão sendo nutridos? Porque sabemos que são os papéis institucionalizados, a forma de vivenciá-los no cotidiano, e os modos de participação nessa prática, que legitimam o perfil ou imagem do profissional perante a sociedade.
Concluo o texto trazendo novamente os ditos de Horta (1975), que reflete o que sempre acreditei e ensino: “a enfermagem não deve ficar de braços cruzados esperando reconhecimento de seu ‘status’, apoio e outras vantagens. Ela precisa mostrar o quanto vale e isso só é possível pelo nosso trabalho, melhorando a qualidade do cuidado prestado, efetivando pesquisas para evidenciar os pontos falhos da estrutura e no que afetam a prestação de cuidados. Só falar, sem nada fazer de concreto é como diz o ditado popular “chover no molhado”. A consciência de seu próprio valor é fundamental para o profissional de enfermagem”.
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Marco Antônio Macerata
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Juliana Spies
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Sibele