Gestão | 4 de julho de 2025

A Judicialização e seu Impacto Financeiro sobre o Sistema de Saúde

A Judicialização e seu Impacto Financeiro sobre o Sistema de Saúde

O sistema de saúde brasileiro é amplo e heterogêneo. Compreende uma diversidade de prestadores nas esferas pública e privada, bem como entidades regulatórias e inúmeros dispositivos legais que disciplinam a relação entre esses atores[1]. Sua magnitude econômica é expressiva, atingindo aproximadamente 10% da renda nacional, e vem experimentando consistente crescimento nos últimos anos, tanto em volume de serviços, quanto em seus custos[2].

No livro The Global Expansion of Judicial Power[3], publicado em 1995, os autores defendem a tese de que há uma expansão do poder judiciário nos sistemas políticos do mundo. Destacam que, por conveniência, se referirão a essa expansão como judicialização. Esse termo, no setor saúde, tem a ver com o incremento gradual e expressivo de ações judiciais para a obtenção, por meio do Poder Judiciário, de medicamentos, insumos e outros produtos de interesse da saúde[4]. Trata-se de um fenômeno crescente e preocupante, intrinsecamente ligado ao avanço dos direitos sociais assegurados pelo artigo 196 da Constituição Federal de 1988. Se por um lado o sistema de saúde se esforça por implementar medidas que otimizem recursos e atenuem a elevação dos custos, por outro, a judicialização impõe despesas adicionais imprevistas tanto para as fontes pagadoras quanto para os estabelecimentos de saúde.

Cabe destacar que a judicialização da saúde, pela escala alcançada, tornou-se relevante não apenas para o sistema de assistência à saúde, mas para o próprio Judiciário que se viu forçado a implantar uma estrutura especializada para atender anualmente milhares de processos[5].

Consequências Positivas e Negativas da Judicialização

A judicialização da saúde teve início nos anos 1990 com as ações judiciais que solicitavam tratamentos para pessoas HIV positivas. As decisões em favor dos pacientes representaram um avanço na garantia do acesso universal e integral aos serviços e bens de saúde[6]. Desde então, as demandas se diversificaram e se multiplicaram, sendo majoritariamente individuais, favorecendo a percepção de que, embora parte delas seja relevante para assegurar o direito à saúde, outra parte tem potencial para desorganizar economicamente o Sistema Único de Saúde (SUS)[7] e o Sistema de Saúde Suplementar. Eis outro ponto crítico: enquanto o SUS e o Sistema de Saúde Suplementar atuam pensando no coletivo e com base no princípio da solidariedade, a judicialização destaca-se pela garantia de direitos individuais.

Os enunciados emitidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicados desde 2014 como orientações aos magistrados no enfrentamento da judicialização da saúde[8], têm contribuído para uma estrutura organizacional mais consistente, todavia não alcançaram os motivos gerados dos processos judiciais. Por outro lado, parte dos profissionais de saúde, em particular os médicos, advogam a imediata incorporação dos pedidos judicializados ao SUS e ao Sistema de Saúde Suplementar. A tese ilusória seria de que essa medida reduziria custos, o que na prática não se confirma. Pelo contrário, amplia-se com o acréscimo de novas ações judiciais.

Em algumas situações se observa que a judicialização pode causar mais danos do que benefícios ao fortalecimento do direito à saúde no Brasil. Quando há um predomínio da utilização de critérios que denotam sentimentos humanitários de solidariedade, justiça e empatia para com um único indivíduo[9], aumenta-se a possibilidade de negar considerações assistenciais tecnicamente validadas e até mesmo descumprir a legislação sanitária vigente. Isso acaba levando a decisões esdrúxulas como no caso da fosfoetanolamina[10], promovendo iniquidades na assistência à saúde.

Itens Judicializados

Os processos judiciais habitualmente incluem exames, terapias, procedimentos cirúrgicos, materiais médico-hospitalares e, principalmente, medicamentos. Eis uma síntese dos itens mais demandados:

  • Medicamentos de alto custo: medicamentos não cobertos pelo SUS ou pelo Sistema de Saúde Suplementar, utilizados nos tratamentos oncológicos, doenças raras e outras condições graves;

  • Tratamentos e procedimentos cirúrgicos: transtornos do espectro autista e algumas cirurgias (ex.: procedimentos por robótica);

  • Exames e diagnósticos: tomografias, ressonâncias magnéticas e exames genéticos não previstos para determinadas condições;

  • Terapias e tecnologias inovadoras: terapias para doenças complexas, como o uso de células-tronco ou novas abordagens terapêuticas;

  • Equipamentos e materiais: próteses, órteses e materiais especiais não cobertos pelo SUS ou Sistema de Saúde Suplementar.

Gastos Produzidos pela Judicialização

A proporção dos gastos com judicialização em relação ao total dos gastos com saúde no Brasil tem apresentado variações expressivas nos últimos anos, dependendo da região e do período analisado.

Em termos nacionais, o número de demandas judiciais relacionadas à saúde, entre 2023 e 2024, aumentou 506%, passando de 12.268 para 74.358 ações[11].

Do ponto de vista regional, identificou-se que em 2020 aproximadamente 5% dos municípios brasileiros (cerca de 270 cidades) destinaram entre 30% e até 100% de seus recursos de saúde para atender demandas judiciais[12]. Nesse mesmo ano, observou-se que 14% dos estados brasileiros alocaram entre 10% e 30% de seus orçamentos de saúde para cumprir decisões judiciais[13].

Impacto Financeiro sobre as Fontes Pagadoras

A judicialização da saúde impõe uma carga financeira crescente e descontrolada sobre o SUS e o Sistema de Saúde Suplementar. Esse impacto compromete a previsibilidade orçamentária, o que reduz a capacidade de planejamento e alocação eficiente dos recursos, além de colocar em risco a sustentabilidade do sistema de saúde brasileiro.

Efeitos no SUS

O SUS é especialmente afetado pelo aumento das despesas decorrentes de demandas judiciais. Em 2021, os gastos com a aquisição de medicamentos por determinação judicial representaram cerca de 10% do orçamento destinado à assistência farmacêutica[14].

Medicamentos de alto custo, como terapias biológicas e medicamentos para doenças raras, estão entre os mais frequentemente solicitados. Um exemplo emblemático é o medicamento Spinraza® (nusinersena), utilizado no tratamento da atrofia muscular espinhal (AME), cujo custo anual por paciente pode ultrapassar a quantia de 1 milhão de reais.

Efeitos no Sistema de Saúde Suplementar

As operadoras de planos de saúde também enfrentam um cenário crítico, com um aumento expressivo no número de ações judiciais. Essas demandas frequentemente envolvem tratamentos fora do rol de procedimentos obrigatórios estabelecido pela Agência Nacional de Saúde, o que eleva a sinistralidade e compromete a sustentabilidade do setor.

Mais de 60% das ações judiciais contra planos de saúde envolvem medicamentos de alto custo ou procedimentos não cobertos[15]. Como consequência, as operadoras de planos de saúde acabam repassando os custos adicionais aos beneficiários, por meio de reajustes anuais. Essa situação de aumento progressivo vai criando um cenário de inviabilidade de pagamento das mensalidades por parte dos beneficiários/usuários.

Efeitos nos Prestadores de Serviços de Saúde

Os prestadores de serviços de saúde, como hospitais e clínicas, sofrem com o impacto da judicialização, especialmente quando obrigados a fornecer tratamentos não contemplados pelo SUS ou o Sistema de Saúde Suplementar, sem garantia de compensação financeira adequada. Isso pode comprometer a qualidade do atendimento e gerar desequilíbrio financeiro. Além disso, as fontes pagadoras costumam argumentar que as demandas judiciais, por não se encontrarem previstas no orçamento, são pagas em um tempo mais longo que o habitual, conduta que onera os prestadores.

Medidas Para Conter os Custos

Para reduzir o impacto financeiro da judicialização e garantir maior equilíbrio entre o direito à saúde e a sustentabilidade do sistema, o Poder Judiciário têm adotado medidas que buscam encontrar uma proporcionalidade entre o direito à saúde e a sustentabilidade financeira das fontes pagadoras.

As estratégias mencionadas, na sua maioria, já se encontram total ou parcialmente em execução:

  • Núcleos de apoio técnico ao judiciário (NAT-Jus): médicos e especialistas auxiliam juízes na tomada de decisões;

  • Implementação do e-NatJus: plataforma eletrônica nacional que reúne pareceres técnicos e que apoiam os magistrados;

  • Câmaras de resolução de litígios de saúde (CRLS): mecanismo extrajudicial que resolve conflitos antes que cheguem ao Judiciário;

  • Ampliação do diálogo entre os poderes (Judiciário, Executivo e Legislativo): estímulo para que se discuta políticas públicas com o propósito de reduzir a judicialização;

  • Uso de inteligência artificial e big data: identificação de padrões de demandas judiciais para prover e evitar novos processos, ao mesmo tempo que auxilia na análise de fraudes e repetições abusivas de ações judiciais;

  • Educação continuada para juízes e operadores do direito: capacitação sobre medicina baseada em evidências e limitações orçamentárias do sistema de saúde.

Essas medidas têm contribuído para melhorar a qualificação das decisões judiciais, mas não para reduzir a demanda de processos[16] e as consequências financeiras.

Conclusão

A judicialização da saúde é um fenômeno multifacetado que exige uma abordagem equilibrada para mitigar seus impactos financeiros. Embora represente um mecanismo importante de acesso a direitos fundamentais, seus efeitos sobre a sustentabilidade do sistema não podem ser ignorados. São essenciais políticas integradas, educação continuada e mecanismos de mediação para garantir um sistema de saúde justo e eficiente.

Para se construir um sistema de saúde universal e equitativo, é necessário ponderar o impacto econômico da judicialização sobre o sistema de saúde e buscar um equilíbrio plausível entre os interesses individuais e coletivos.


[1] Conselho Nacional de Justiça (CNJ). judicialização da saúde no brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Instituto de Ensino e Pesquisa – INSPER. Conselho Nacional de Justiça, 2019.
[2] Ibidem.
[3] Tate, C; Vallinder, T. The global expansion of judicial power. New York University Press: New York and London, 1995, 570 p.
[4] Mapelli Júnior, R. Judicialização da saúde: regime jurídico do SUS e intervenção na administração pública. São Paulo: Atheneu; 2017. 237p.
[5] Conselho Nacional de Justiça (CNJ). judicialização da saúde no brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Instituto de Ensino e Pesquisa – INSPER. Conselho Nacional de Justiça, 2019.
[6] Ministério da Saúde (BR), Secretaria de Vigilância em Saúde, Programa Nacional de DST e Aids. O remédio via Justiça: um estudo sobre o acesso a novos medicamentos e exames em HIV/aids no Brasil por meio de ações judiciais. Brasília, DF; 2005 (Série Legislação; nº 3). https://bit.ly/3G9u1Wh.
[7]  Oliveira, V. Caminhos da judicialização do direito à saúde. In: Oliveira, V (Organizadora). Judicialização de políticas públicas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2019. p. 177-99.
[8] Conselho Nacional de Justiça. Enunciados da I, II e III Jornadas de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça. Brasília, DF: CNJ; 2019 [citado 15 jan 2022]. https://bit.ly/3KSjQsQ.
[9] Zebulum, J. Decisões judiciais na saúde, um campo propício para a interferência de convicções pessoais de cada juiz: análise da jurisprudência de quatro tribunais de justiça. Rev Dir Sanit. 2019;19(3):16-33. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v19i3p16-33.
[10] Santos, M et al.  O caso da fosfoetanolamina sintética: judicialização com risco à saúde. In: Bucci, M; Duarte, C (Coordenadoras), Judicialização da saúde: a visão do Poder Executivo. São Paulo: Saraiva; 2017. p. 139-73.
[11] Werneck, M. Judicialização da saúde atinge níveis recordes no Brasil. Jornal na Net. https://www.jornalnanet.com.br/noticias/32999/judicializacao-da-saude-atinge-niveis-recordes-no-brasil.
[12] Instituto Oncoguia. Judicialização consumiu de 30 a 100% da verba da saúde em mais de 250 cidades brasileiras. Equipe Oncoguia, 22/jun/2024. https://www.oncoguia.org.br/conteudo/judicializacao-consumiu-de-30-a-100-da-verba-da-saude-em-mais-de-250-cidades-brasileiras/17178/7/.
[13] Ibidem.
[14] Ministério da Saúde. Saúde gasta R$ 215 milhões em medicamentos obtidos via judicial. 19/fev/2022. https://wwwfolhadelondrinacombrgeralsaude.
[15] Silva, J. et al. “Judicialização e Sustentabilidade na Saúde Suplementar.” Revista de Saúde Pública, 2021.
[16] Conselho Nacional de Justiça (CNPJ). Política aprovada pelo CNJ propõe soluções adequadas às demandas da saúde. Notíciais CNJ, 17/nov/2023. https://www.cnj.jus.br/politica-aprovada-pelo-cnj-propoe-solucoes-adequadas-as-demandas-da-saude/.

 

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