Quinto Neto é um dos principais percursores do modelo de acreditação no Brasil. Em sua coluna, aborda assuntos como as certificações de qualidade em saúde, o sistema de saúde brasileiro e a segurança do paciente.
Remuneração em Saúde: A Necessidade de Modelos Diversificados para Responder à Complexidade Assistencial
Em essência, operadoras de planos de saúde (OPS) e prestadores de serviços de saúde (PSS) compartilham um objetivo comum: garantir que os beneficiários/pacientes recebam, quando necessário, o melhor atendimento possível, no tempo certo e no menor custo possível[1]. Esse alinhamento é amplamente reconhecido. No entanto, persistem divergências – algumas sutis, outras bastante evidentes – que tornam a relação desafiadora, tensa e, por vezes, antagônica entre os dois agentes.
Predomina o hábito de que a forma de remuneração aplicada pelas OPS é idêntica para todos os serviços de saúde. A realidade, entretanto, mostra que a heterogeneidade da assistência à saúde, que inclui desde consultas simples até procedimentos de alta complexidade e cuidados paliativos, exige uma lógica de remuneração distinta e adaptada à natureza dos serviços prestados.
Embora diversos segmentos entendam a impropriedade do “pagamento por serviços individuais”, devido a ineficácia e reducionismo frente à complexidade da atenção em saúde[2],[3], a transição para modelos remuneratórios diferentes do tradicional tem sido permeada por resistência (o costume ao modelo vigente e o receio de perder receita ou autonomia), fragmentação do sistema de saúde (operação de forma isolada, o que dificulta a coordenação do cuidado e a mensuração de resultados), falta de dados confiáveis (inexistência de um sistema de informações para acompanhar indicadores e calcular remuneração por desempenho) e baixa maturidade em gestão de serviços (muitos prestadores não têm controle adequado de custos, protocolos clínicos padronizados ou ferramentas para avaliar resultados).
A Multiplicidade da Assistência Exige Pluralidade de Modelos de Remuneração
A diversidade dos serviços assistenciais no setor saúde, que variam em complexidade, previsibilidade clínica e intensidade tecnológica, impõe a adoção de múltiplos modelos de remuneração alinhados às especificidades de cada tipo de cuidado. Não é racional nem eficiente aplicar um único modelo de pagamento a todo o espectro assistencial, uma vez que diferentes formatos de atenção (ambulatorial, hospitalar, cuidados de longa duração, urgência/emergência, etc.) demandam arranjos próprios relativos aos incentivos, controle e avaliação de desempenho.
A adoção de modelos de remuneração coerentes com a natureza do serviço prestado pode melhorar a alocação de recursos[4], ampliar o acesso, induzir boas práticas clínicas[5] e contribuir para a sustentabilidade dos sistemas de saúde[6].
Tendo em conta critérios como previsibilidade clínica, controle de custos e incentivo à qualidade, o quadro abaixo apresenta uma síntese dos tipos de assistência associando-os aos modelos de pagamento em utilização por algumas operadoras de planos de saúde.
Tipos de Assistência e Modelos de Remuneração Correspondentes
Tipo de Assistência
Características Principais
Modelos de Remuneração Mais Indicados
Justificativa Gerencial
Assistência Ambulatorial de Baixa Complexidade
Alta previsibilidade, elevado volume, baixa variabilidade clínica
• Capitação
• Pagamento por pacote ou procedimento
Favorece previsibilidade orçamentária e incentiva a eficiência operacional.
Atendimento em Urgência e Emergência
Baixa previsibilidade, alta variabilidade clínica, criticidade de tempo
• Pagamento por serviço prestado
• Pacote ajustado à complexidade
Garante acesso oportuno, com necessidade de controle para evitar uso excessivo.
Internações Hospitalares Eletivas
Procedimentos programados, baseados em protocolos clínicos padronizados
• Pagamento por evento (DRG, pagamento por pacote)
• Pagamento por desempenho
Estimula o controle de custos e a padronização de condutas assistenciais.
Cuidados de Longa Duração e Doenças Crônicas
Uso contínuo de recursos, foco em cuidado coordenado e longitudinal
• Capitação ajustada por risco
• Pagamento por desempenho
Estimula a continuidade do cuidado e a melhoria de desfechos clínicos.
Oncologia e Terapias de Alto Custo
Alta complexidade, imprevisibilidade terapêutica, forte impacto financeiro
• Pagamento por pacote
• Compartilhamento de risco
Reduz incertezas financeiras e promove o uso racional de tecnologias.
Atenção Primária à Saúde (APS)
Coordenação da rede, com foco em prevenção, promoção e gestão do risco
• Capitação com metas assistenciais
• Pagamento por desempenho
Alinha incentivos à resolutividade e à coordenação da linha de cuidado.
Cuidados Paliativos
Ênfase no conforto, na integralidade e na atuação multidisciplinar
• Capitação com indicadores de qualidade
• Pagamento por pacotes de cuidado
Estimula abordagens integradas, focadas na experiência e qualidade de vida do paciente.
Observação: a) Pagamento por serviço prestado (Fee-for-Service): valor específico para cada procedimento, consulta, exame, internação ou outro serviço executado; cada intervenção realizada gera um pagamento individual, independentemente do desfecho clínico ou da efetiva necessidade do serviço; b) Pagamento por pacote: valor fixo para um conjunto de serviços relacionados a um episódio de cuidado; c) DRG (Diagnosis Related Group): forma de agrupamento por diagnóstico para pagamento hospitalar; d) Pagamento por desempenho (P4P): pagamento vinculado a metas de qualidade ou eficiência; e) Capitação: pagamento fixo por beneficiário, independente do volume de serviços; f) Compartilhamento de risco: partilha de risco entre prestador e operadora para medicamentos ou tecnologias de alto custo.
A combinação de diferentes modelos de remuneração deve considerar o grau de maturidade institucional, a capacidade de gestão e a complexidade dos serviços assistenciais envolvidos. Modelos híbridos podem ser estrategicamente articulados para equilibrar incentivos, garantir sustentabilidade financeira e promover qualidade no cuidado. Nesse contexto, elementos como a governança clínica, a integração efetiva das informações assistenciais e o monitoramento sistemático de desfechos tornam-se suportes fundamentais para o êxito de qualquer arranjo remuneratório.
Alguns estudos[7],[8] destacam que adaptar os modelos de pagamento ao tipo de atenção é fundamental para promover a sustentabilidade e qualidade dos serviços de saúde. No entanto, é importante ressaltar que o avanço nessa direção exige comprometimento estratégico e forte protagonismo das lideranças, tanto das OPS quanto dos PSS. Isso porque a transição para modelos mais sustentáveis implica romper com paradigmas consolidados na gestão da prática médica[9], os quais já demonstram claros sinais de esgotamento e ineficiência diante dos desafios atuais do sistema de saúde.
Modelos Mistos: Tendência Mais Adequada
Os sistemas de saúde mais avançados têm progressivamente adotado modelos híbridos de remuneração, que combinam diferentes métodos de pagamento dentro de um mesmo contrato ou rede assistencial. Essa estratégia busca adaptar-se à diversidade dos serviços prestados e às especificidades clínicas, promovendo maior eficiência e sustentabilidade. Essa abordagem distingue três benefícios:
1. Maior convergência entre incentivos financeiros e objetivos assistenciais, o que promove práticas clínicas mais efetivas e melhores desfechos para os pacientes;
2. Redução de distorções, como a indução de demanda desnecessária[10] (típica do fee-for-service) ou a subutilização de recursos (potencialmente associado à capitação);
3. Fomento à coordenação do cuidado e melhoria da qualidade clínica, por meio de modelos que incentivam desfechos positivos e integração entre níveis de atenção.
A evolução do conhecimento em gestão e a variedade de serviços disponibilizados na assistência à saúde indicam que … a chave está em pagar de maneira diferente pelo que é diferente, e não tratar todas as formas de cuidado como se fossem iguais[11].
Regulação e Gestão Devem Apoiar a Diversidade
Tanto os órgãos reguladores, como a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) [12], quanto os gestores de operadoras e prestadores, devem atuar de forma coordenada para promover a evolução dos modelos de contratualização e remuneração. Entre as diretrizes prioritárias, destacam-se:
1. Incentivar contratos com componentes variáveis, escaláveis e baseados em desempenho, ajustáveis ao perfil assistencial e à complexidade dos serviços;
2. Incorporar indicadores de desfecho clínico e valor em saúde como critérios para modulação de pagamentos[13], promovendo práticas orientadas à qualidade e à efetividade do cuidado;
3. Reconhecer que a sustentabilidade do sistema de saúde está condicionada à coerência entre o modelo assistencial adotado e a lógica econômico-financeira aplicada[14], evitando desalinhamentos que comprometam o desempenho organizacional e a entrega de valor ao paciente.
Algumas OPS já adotam, ainda que de forma incipiente, modelos de remuneração conforme o tipo de serviço prestado. Trata-se, evidentemente, de uma estratégia complexa que demanda diálogo constante e um elevado nível de confiança entre as partes envolvidas (incomum entre OPS e PSS), para que, gradualmente, sejam estabelecidas novas formas de pagamento.
Grande parte da dificuldade em implementar essas modalidades se encontra na necessidade de recompor valores, o que adiciona uma camada extra de complexidade, tanto para as OPS quanto para os PSS, especialmente para estes, que enfrentam maiores desafios nesse processo.
Conclusão
O relacionamento entre OPS e PSS é decisivo para a qualidade e sustentabilidade da assistência à saúde. A fragmentação do cuidado e os recorrentes conflitos entre OPS e PSS muitas vezes decorrem de modelos de remuneração desalinhados com as complexidades da prática clínica. Assim, a diversificação das formas de pagamento, calibrada de acordo com as especificidades de cada contexto assistencial, não é apenas desejável, mas imprescindível. Somente com formas de remuneração mais adequadas será possível promover a efetividade dos cuidados, garantir maior equidade no acesso e assegurar a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar.
[2] Porter, M; Lee, T. The strategy that will fix health care. Harvard Business Review, 2013.
[3] Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD). Health care payment systems: a global overview. Paris: OECD Publishing, 2021.
[4] Porter, M. What is value in health care? New England Journal of Medicine, v. 363, n. 26, p. 2477–2481, 2010.
[5] BRASIL. Ministério da Saúde. Modelos de remuneração e seus impactos na qualidade da assistência e nos custos em saúde. Brasília: MS, 2022.
[6] Silva, M; Lima, L. Modelos de pagamento e eficiência na saúde suplementar brasileira. Ciência & Saúde Coletiva, v. 26, n. 6, p. 2301–2312, 2021.
[7] Mendes, E. As redes de atenção à saúde. Organização Pan-Americana da Saúde. Brasília, 2021.
[8] Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS). Caderno de Valor em Saúde. São Paulo: IESS, 2024.
[9] Christensen, C; Grossman, J; Hwang, J. Inovação na gestão da saúde: a receita para reduzir custos e aumentar a qualidade. Porto Alegre: Bookman, 2009, 422 p.
[10] Abrange. Remuneração baseada em valor: iniciativas e perspectivas. São Paulo: ABRAMGE, 2023.
[11] Porter, M; Lee, T. The strategy that will fix health care. Harvard Business Review, 2013.
[12] Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Caderno de Boas Práticas: modelos de remuneração baseados em valor. Brasília: ANS, 2024.
[13] Organisation for Economic Cooperation and Development (OECD). Health care payment systems: a global overview. Paris: OECD Publishing, 2021.
[14] Fenasaúde. Relatório de Sustentabilidade 2023. Rio de Janeiro: Federação Nacional de Saúde Suplementar, 2023.