Gestão | 6 de maio de 2025

Entre o Mercado e o Direito à Saúde: Os Médicos e a Crise Estrutural da Saúde Suplementar no Brasil

Entre o Mercado e o Direito à Saúde Os Médicos e a Crise Estrutural da Saúde Suplementar no Brasil

A saúde suplementar, vinculada ao âmbito privado, atende aproximadamente 25% da população brasileira[1]. Apesar do papel relevante no acesso à saúde, o setor enfrenta um período marcado por perda de confiança, judicialização crescente, insatisfação de prestadores, cobranças complementares por médicos e estabelecimentos de saúde credenciados e até descredenciamentos. Isso anuncia uma crise estrutural que carece de análise urgente para se iniciar o equacionamento de uma situação que aflige os principais interessados: operadoras de planos de saúde (OPS), prestadores de serviços de saúde e pacientes.

É cada vez mais frequente a cobrança complementar de honorários por médicos credenciados. Do ponto de vista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), trata-se de uma conduta abusiva. O mesmo posicionamento é sustentado pelo Código de Defesa do Consumidor e até mesmo pelo Código de Ética Médica e alguns contratos celebrados com OPS. O fato é que a magnitude do descumprimento de regras impeditivas por parte dos médicos sugere a existência de falha profunda na sustentabilidade e no equilíbrio do setor suplementar.

Lógica de Mercado Versus Lógica do Direito à Saúde

A concepção de mercado aplicada ao setor suplementar, que considera que a saúde um serviço como qualquer, organiza os planos como produtos, regidos por contratos privados, precificação por risco, competição e metas de rentabilidade[2]. Nesse enfoque, a assistência à saúde é mediada pela capacidade de pagamento, seja por meio de planos de saúde ou contratação direta de serviços. Isso naturalmente introduz desigualdades de acesso e cobertura[3].

As OPS, que compõem predominantemente o setor suplementar, buscam a otimização de recursos, controle de custos e entrega de retorno a investidores – especialmente em empresas de capital aberto. Atuam, portanto, como qualquer empreendimento privado. Essa racionalidade se expressa em práticas como:

– Restrição de redes credenciadas para reduzir despesas;


– Glosas frequentes de procedimentos;


– Incentivos à verticalização e à integração vertical (com serviços próprios);


– Estímulo à adoção de planos com franquia e coparticipação, transferindo parte do custo para os beneficiários.

O modelo de mercado traz, em tese, ganhos em eficiência e inovação tecnológica, mas inevitavelmente exclui ou penaliza quem tem menor poder aquisitivo, além de provocar conflitos com os profissionais de saúde, frequentemente pressionados por metas financeiras e remuneração incompatível com a complexidade do trabalho médico.

A lógica do direito à saúde, por sua vez, fundamenta-se na Constituição Federal de 1988, que consagra a saúde como um direito de todos e dever do Estado (art. 196). Nessa perspectiva o acesso aos serviços de saúde não é condicionado à renda ou mercado; obedece a critérios de necessidade, equidade e planejamento populacional. Os princípios da universalidade, integralidade e equidade regem o Sistema Único de Saúde (SUS) e refletem o entendimento da saúde como bem público e não como ativo econômico[4]. O método público, portanto, valoriza o interesse coletivo, os determinantes sociais da saúde e a regulação do sistema com foco no bem-estar da população.

Sinais da Crise: Cobrança Complementar e Cooperativas de Especialidades Médicas

A cobrança complementar de honorários por médicos da rede credenciada de planos de saúde se intensificou. Essa conduta expressa a insatisfação dos médicos com os valores pagos pelas OPS[5]. Diversos estudos apontam que os honorários médicos, tabelados unilateralmente pelas operadoras, encontram-se defasados em relação aos custos do setor[6]. Os médicos alegam que a remuneração atual é insuficiente para manter a qualidade do atendimento, o que os leva, informalmente, a repassar essa diferença aos pacientes – ainda que isso viole os princípios contratuais e regulatórios da saúde suplementar.

O surgimento das cooperativas de especialidades médicas – anestesiologistas, cirurgiões cardiovasculares, cirurgiões torácicos, cirurgiões de cabeça e pescoço, entre outras -, é uma tentativa dos médicos se organizarem coletivamente para negociar condições melhores de remuneração com as OPS. Essa forma de atuação dá mais força na mesa de negociação, às vezes até pressionando com risco de desassistência se as condições não forem revistas. Representa, portanto, uma iniciativa que busca aumentar o poder de negociação junto as fontes pagadoras.

A cobrança complementar por médicos credenciados e a formação de cooperativas de especialidades médicas expressam a desarmonia na relação econômica entre médicos e OPS, mas não resolve a crise no setor suplementar. Ambas as formas de reação – individuais e coletivas – evidenciam a necessidade de revisar os modelos de remuneração e fortalecer mecanismos transparentes e sustentáveis para todos os envolvidos. Esse fenômeno, consequentemente, precisa ser compreendido como reflexo de um desequilíbrio sistêmico envolvendo três atores: OPS, prestadores de serviços e pacientes.

O Impasse do Setor Suplementar

O sistema suplementar enfrenta um desafio estrutural assombroso. De um lado, OPS pressionadas por custos crescentes e sinistralidade elevada; de outro, prestadores descontentes com a remuneração; no centro, os pacientes, que pagam por um plano e são surpreendidos com cobranças extras. Esse arranjo esdrúxulo perturba o sentimento de confiança e gera um processo de erosão da legitimidade do setor[7].

A ANS, que detém o poder normativo e fiscalizatório sobre as OPS, enfrenta limitações institucionais e resistência política. Por conseguinte, tem-se uma regulação insuficiente e baixa efetividade na prevenção e punição de abusos[8].

O movimento dos médicos, de forma individual e coletiva, indica a fragilidade do atual modelo de contratação e remuneração na saúde suplementar. Quando os médicos recorrem a meios alternativos ou paralelos para manter sua renda, sobrevém a perda de coesão e previsibilidade do sistema suplementar. Isso também afeta diretamente os pacientes que ficam no meio do conflito: ou pagam mais ou enfrentam a descontinuidade do atendimento.

A Necessidade de uma Composição Justa

Superar a crise do setor suplementar exige repensar o modelo e sua articulação com o setor público a fim de que seja fortalecido o macrossistema de saúde brasileiro[9]. Uma composição justa entre OPS e prestadores não se resume a uma exclusiva negociação financeira. Exige o reconhecimento mútuo de papéis, responsabilidades e limites. Isso passa necessariamente por:

– Tabelas de honorários atualizadas e transparentes;


– Regras contratuais claras e simétricas;


– Formas de remuneração que valorizem a qualidade, não apenas o volume de procedimentos;


– Mecanismos de mediação institucional para resolver conflitos sem judicialização;


– Compromisso conjunto com a assistência ao paciente como valor central.

Mais do que uma solução técnica, trata-se de uma escolha política: recompor o setor suplementar tendo em conta a complementação solidária com o setor público. Uma alternativa plausível, porém exaustiva e demorada, é desenvolver um processo de colaboração entre as OPS e os prestadores de serviços no propósito de encontrar condições de viabilidade econômica, qualidade assistencial e acesso adequado aos pacientes. Isso supõe profissionais instruídos e hábeis na condução de opiniões e interesses divergentes (incomum no setor saúde), e com disposição para alcançar o melhor resultado possível para as partes envolvidas.

A construção de uma base contratual e operacional equilibrada entre as OPS e os médicos deve levar em conta pelo menos três componentes:

Transparência

Regras, critérios de remuneração, reajustes e autorizações pelas partes;


Compartilhamento de informações financeiras, técnicas e assistenciais permitindo decisões fundamentadas.

Equidade

Remuneração proporcional à complexidade, qualidade e volume dos serviços prestados;


Disposição para colaborar evitando condições abusivas ou atitudes unilaterais pelas partes.

Sustentabilidade

Formas de remuneração que favoreça o uso racional dos recursos e a eficácia, evitando desperdícios e incentivando a qualidade do cuidado;


Implementação de relações de longo prazo, mantendo a viabilidade econômica tanto das operadoras quanto dos prestadores.

Esses fatores precisam ser mediados por uma regulação mais forte por parte do poder público, que inclua como eixo a proteção dos pacientes e o equilíbrio entre a sustentabilidade econômica dos agentes financeiros e as ações assistenciais, assim como a função social da saúde.

Conclusão

A saúde suplementar passa por um desequilíbrio entre as forças de mercado e o compromisso constitucional com o direito à saúde. A prática de cobrança complementar por médicos credenciados e o surgimento de cooperativas de especialidades manifestam o esgotamento do modelo organizacional e remuneratório atual, o qual associa contratos mal estruturados, profissionais insatisfeitos e pacientes desamparados. Superar esse cenário exige uma revisão das bases regulatórias, contratuais e financeiras do sistema. A composição justa entre operadoras, médicos e estabelecimentos de saúde, mediada por uma regulação pública eficaz, é condição essencial para que a saúde suplementar cumpra a sua função social e se integre, de fato, ao sistema de saúde brasileiro.


[1] Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Dados e Indicadores do Setor Suplementar. Brasília, 2023.
[2] Freeman, R. The market in health care: the UK experience. In: Social Policy Review, n. 24, 2012.
[3] Pereira, D. A mercantilização da saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2021.
[4] Paim, J et al. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. The Lancet, v. 377, p. 1778-1797, 2011.
[5] IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Cobranças ilegais em planos de saúde: o que diz a lei. São Paulo, 2023.
[6] Conselho Nacional de Saúde (CNS). Relatório sobre remuneração médica na saúde suplementar. Brasília, 2022.
[7] Vieira, F. Judicialização e saúde suplementar: causas e consequências. Brasília: IPEA, 2020.
[8] Giovanella, L. et al. Regulação em saúde suplementar: dilemas e desafios. Ciência & Saúde Coletiva, v. 24, n. 2, 2019.
[9] Riera, R et al. Supporting decisions of the Brazilian Regulatory Agency for supplementary healthcare: a case study. Value in health regional issues, v. 34: 65-70, march 2023.

 

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