Gestão | 28 de fevereiro de 2020

O Bom, o Ruim e o Melhor nas Organizações de Saúde

O Bom, o Ruim e o Melhor nas Organizações de Saúde

No setor saúde há uma disposição de todos se considerarem autossuficientes e, quando recebem críticas, negam deficiências internas e responsabilizam fatores externos, em particular a restrita condição econômico-financeira. Não se aceita, por razões morais, sociais e políticas, serviços de saúde com diversos níveis de qualificação e, consequentemente, com diferentes graus de segurança (tanto assistencial quanto administrativa), embora a população em geral reconheça uma hierarquia de qualificação entre os serviços de saúde, apoiada na reputação comunitária, e escolha o que é possível.

De maneira geral, em todos os negócios da vida humana há serviços com diferentes níveis de qualificação, por exemplo, altos, médios e baixos. Isso não necessariamente significa demérito para quem se encontra abaixo dos níveis altos de qualificação. Aliás, em nenhum lugar as organizações de um determinado setor conseguem estar no mesmo nível de atuação. Na área da saúde, contudo, obstinadamente supõe-se e espera-se que todos se encontrem no mesmo patamar. Isso leva a uma falha econômica – remuneração idêntica para diferentes níveis de qualificação. Isso é bom para as fontes pagadoras (que não precisam desenvolver sistemas mais sofisticados de remuneração), mas ruim para os prestadores (que necessitam adaptar-se a valores fixos oferecendo serviços melhores que outros) e pacientes/clientes (que são penalizados por não receberem cuidados melhores). Vale ressaltar que o governo demarca os limites básicos de qualificação – exigências legais da vigilância sanitária e de outras instâncias governamentais que equalizam o ponto de partida para todas as organizações de saúde[1].

Qualidade é cumprimento de padrões e requisitos

Na atualidade invoca-se que as organizações de saúde devem ter a qualidade[2] como parte central da prestação dos serviços que proporcionam. Não é demais sublinhar que este conceito, em si, é vazio e abstrato. Aliás, pode ser quase tudo que alguém queira. Só adquire consistência pragmática quando se concebe como um conjunto de, por exemplo, seis dimensões[3] (serviço seguro, eficaz, centrado no paciente, disponibilizado em tempo hábil, eficiente e equitativo) ou o atendimento dos padrões de um sistema de acreditação. Qualidade pressupõe o cumprimento de requisitos – um tipo particular de evidência – na suposição de que estes definem se um serviço é bom ou ruim, se é melhor que outro. Embora o uso de métodos sistemáticos de melhoria da qualidade incorpore um sensato rigor científico e credibilidade, sempre encerra um quantum moral nos mesmos em decorrência dos valores sociais de um determinado local.

Alcançar um padrão elevado de qualidade nos serviços de saúde significa estreitar a lacuna entre a prática real em qualquer instância e a melhor prática possível[4]. Isso requer um esforço constante dos gestores, médicos e demais profissionais de saúde para que superem o estágio no qual suas organizações se encontram.

A concorrência entre serviços de saúde

A questão dos serviços de saúde com alta, média e baixa qualificação vai além dos aspectos técnicos. Envolve aspectos políticos e culturais[5] ligados aos valores inerentes ao sistema de saúde brasileiro. Para alguns, qualquer presença de concorrência pode ser compreendida como “demais” e um sinal assustador de desmantelamento do tão estimado Sistema Único de Saúde, ou melhor, Sistema Público de Saúde. Para outros, a introdução da concorrência é bem-vinda para melhorar a eficiência, a produtividade e a saúde da população. Tem-se, portanto, posições antagônicas para uma mesma condição. Talvez a alternativa conciliadora seja considerar o setor saúde atuando em um contexto de “quase mercado”, onde os recursos financeiros não participam diretamente das transações assistenciais, tornando indispensável uma forte regulação governamental.

O fato da concorrência ser interpretada tanto como um “problema” quanto uma “solução”, ressalta o papel crucial do contexto sócio-político sobre as forças de mercado. A concorrência pura e simples, baseada no preço e no melhor, não é um sinalizador do quanto um bem é valorizado pela sociedade, seja pelos custos envolvidos em sua produção, seja pelo benefício adicional de seu consumo[6]. Não se harmoniza com as características dos serviços de saúde e, consequentemente, não alinha nem equilibra – como alguns creem – qualidade e custos. Cabe ponderar que já existe uma concorrência estrita (na forma de reputação das organizações de saúde e médicos) que pode ser expandida, de forma controlada, com a inclusão de componentes que destaquem, explicitamente, os melhores.

Parece razoável, na tensão diária do funcionamento das organizações de saúde, a existência de um ambiente onde predomine um equilíbrio instável entre regulação governamental e concorrência estrita, com o propósito de obter-se os melhores resultados para as partes interessadas – pacientes, prestadores, fornecedores (materiais e dispositivos, medicamentos e equipamentos), pagadores e governos.

[1] Habitualmente as organizações de saúde resistem em cumprir esses padrões mínimos aceitáveis.
[2] Mitchell, P; Cribb, A; Entwistle, V A. Defining What is Good: Pluralism and Healthcare Quality. Kennedy Institute of Ethics Journal. 2019; v 29 (4), December.
[3] IOM (Institute of Medicine. 2001. Crossing the quality chasm: a new health system for the 21st century. Washington, DC: National Academy Press.
[4] Mitchell, P; Cribb, A; Entwistle, VA. Defining What is Good: Pluralism and Healthcare Quality. Kennedy Institute of Ethics Journal. 2019; v 29 (4), December.
[5] Goddard, M. Competition in healthcare: good, bad or ugly? Int J Health Policy Manag. 2015; 4(9):567–569.
[6] INSPER/White Paper. Azevedo, PF et alii. A cadeia de saúde suplementar no Brasil: avaliação de falhas de mercado e propostas de políticas. 2016; São Paulo, White Paper, (01), maio.

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