Quinto Neto é um dos principais percursores do modelo de acreditação no Brasil. Em sua coluna, aborda assuntos como as certificações de qualidade em saúde, o sistema de saúde brasileiro e a segurança do paciente.
Glosas: Incômodo para Prestadores, Conforto para Operadoras de Saúde
As glosas médicas – recusas parciais ou totais de pagamentos por parte das operadoras de saúde – representam um dos principais pontos de tensão com os prestadores de serviços[1]. Para médicos, hospitais, clínicas especializadas, laboratórios de análises clínicas e outros estabelecimentos de saúde significam perda de receita, retrabalho e insegurança financeira; para as operadoras constituem garantia da correta aplicação dos recursos financeiros e o controle de pagamento indevido.
Essa situação levanta a seguinte questão: até que ponto as glosas cumprem sua função legítima e quando passam a ser um instrumento de desequilíbrio na cadeia da saúde?
As glosas não são um mecanismo universal[2]. São típicas de sistemas de saúde privados ou semiprivados, como no Brasil e nos Estados Unidos. Nesses países, onde funcionam simultaneamente dois sistemas – o público e o privado – as glosas são rotina. Como os processos são desenhados de forma precária e o faturamento baseia-se nos serviços prestados item a item, são frequentes as inconsistências e irregularidades – erros de preenchimento, divergências de valores, serviços não autorizados ou prestados de forma inadequada e até mesmo fraude. Isso leva as OPS a deliberarem o que deve ser pago. É uma medida unilateral que penaliza os prestadores. Aliás, se as OPS desejam reduzir ou até evitá-las, precisam elevar o grau de exatidão nas orientações correspondentes ao faturamento e oferecer treinamento periódico e sistemático aos prestadores. Isso tem a ver com a reestruturação do relacionamento entre OPS e prestadores, abandonando a mentalidade de adversário e abraçando o espírito de colaboração[3].
No Reino Unido, Canadá e Suécia[4], onde existem sistemas públicos integrais, não há glosa do jeito que se conhece no Brasil. O foco é mais no controle do orçamento geral e padrões de qualidade, não na cobrança de serviços. Quando há erro, é tratado via auditoria interna e não como glosa financeira individual.
Na Alemanha, França e Austrália[5] existem processos de auditoria e contestação de contas. Mas não há “glosa” em massa como prática comum. Quando ocorre, é pontual e sempre com revisão rápida. Os acordos são baseados em tabelas e protocolos padronizados, o que reduz o espaço para contendas.
As glosas existem onde os prestadores faturam os serviços prestados e as fontes pagadoras revisam cada item utilizado. A origem delas se encontra na forma de remuneração. Se o foco da cobrança for localizado na eficiência global dos serviços prestados, elas se tornam dispensáveis.
Uma das formas de evitar as glosas é o estabelecimento antecipado dos valores globais a serem pagos pelos cuidados prestados (ex.: pacotes assistenciais e pagamento per capita), onde a priori as fontes pagadoras definem o valor de remuneração do serviço que será prestado. Isso habitualmente traz previsibilidade de valores para ambas as partes e, como regra, dispensa a análise das contas faturadas.
Comparação entre alguns países
A análise comparativa de glosas em variados sistemas de saúde revela como o modelo de financiamento e a estrutura administrativa de cada país influenciam diretamente a frequência, natureza e impacto delas. Países com sistemas de saúde mais centralizados, públicos e baseados em orçamento global ou remuneração per capita(como Reino Unido, Canadá e França) apresentam uma incidência baixa ou inexistente de glosas.
A forma de remuneração baseada no fee for service, como no Brasil (especialmente na saúde suplementar), as glosas são frequentes. Nesses casos, a cobrança exige a validação de cada guia, código ou procedimento. Isso abre margem para glosas por motivos administrativos (falta de documentação, erro de codificação), clínicos (procedimento incompatível ou não autorizado), intencionais (glosa linear com o propósito de melhorar o fluxo de caixa) ou até contratuais. Essa condição impõe uma carga burocrática expressiva aos prestadores de serviços, que precisam manter equipes especializadas em faturamento, auditoria e recursos de glosas.
Comparação entre diferentes sistemas de saúde sobre faturamento e a existência de glosas
O lado “enviesada” das OPS
Do ponto de vista das operadoras, as glosas são um instrumento legítimo de auditoria e controle. Elas permitem combater fraudes, desperdícios e cobranças indevidas. No entanto, há operadoras que utilizam as glosas como uma barreira burocrática: recusam inicialmente, sabendo que parte dos prestadores não terá fôlego para contestar. Isso reduz o volume de pagamentos e gera economia imediata – uma economia que, na ponta, se traduz em desequilíbrio na relação com quem de fato entrega o serviço de saúde. Em alguns casos, o excesso de glosas acaba funcionando como uma estratégia de redução de custos (postergação ou negação de pagamento), mais do que como um mecanismo de auditoria justa. No extremo encontra-se a utilização imprópria das glosas como “pressão financeira” sobre os prestadores. Trata-se, consequentemente, de uma forma anômala do emprego das glosas.
O lado “enviesado” dos prestadores
Os prestadores também aplicam medidas[6] com o propósito de “enganar” as OPS, como:
1 – Troca deliberada de códigos para tornar procedimento não coberto no rol mínimo de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em cirurgias/terapias não aceitos pelas OPS: isso constitui fraude/abuso na indicação de procedimentos não relacionados ao correto diagnóstico dos casos;
2 – Pedido de inúmeros códigos TUSS[7]: uso de códigos em duplicidade ou de procedimentos já inclusos em outros códigos realmente procedentes;
3 – Solicitação improcedente de OPME[8] de alguns requisitantes: itens em quantidade exagerada, itens sem relação com o TUSS do caso, itens com marca/fabricante exclusivos e a escolha de fornecedores dos OPME pedidos.
Impacto Financeiro para os Prestadores
As glosas representam não apenas uma perda de receita, mas um custo adicional para os prestadores. Além de não receberem pelo atendimento efetuado, precisam mobilizar suas equipes para reavaliar, contestar e reenviar a cobrança (aumento do custo administrativo com reprocessamento de contas). Isso implica mais tempo, mais pessoas envolvidas e mais risco de nova recusa. Quando se somam dezenas ou centenas de glosas por mês, o impacto sobre o fluxo de caixa se torna crítico – especialmente para estabelecimentos de saúde menores, que operam com margens apertadas. As glosas, nesse contexto, significam um duplo prejuízo: financeiro e operacional.
Boas práticas para redução de glosas
Os prestadores podem contribuir para a minimização das glosas aplicando medidas que padronizem o processo de faturamento.
As OPS, mais do que os prestadores, podem adotar medidas capazes de reduzir glosas.
Conclusão
É necessário romper o ciclo vicioso em que as OPS enxergam nas glosas um mecanismo de constranger os prestadores e até economizar recursos. As glosas, utilizadas de forma indiscriminada ou como estratégia de contenção de custos, comprometem não apenas a sustentabilidade dos prestadores de serviços, mas também impactam diretamente na qualidade do atendimento. Ao inviabilizar financeiramente os prestadores, desestimulam investimentos em melhoria e inovação, além de deteriorar a confiança dos profissionais e dos beneficiários. A superação do status quo, no sentido que a regulação e a transparência prevaleçam, favorecendo a ética e o cuidado integral à saúde, avalizará um sistema de saúde suplementar mais justo, eficiente e centrado no paciente.
[1] Brito, M. O modelo de saúde brasileiro e o instituto da glosa. Confederação Nacional de Saúde (CNS). In: Allgayer, C (Organizador). Porto Alegre: IAHCS, 2016, P. 250 a 265.
[2] Silva, J; Hinrichsen, S. Glosas hospitalares e o uso de protocolos assistenciais: revisão integrativa da literatura. Revista de Administração em Saúde, v. 17, n. 66, 2017.
[3] Porter, M; Teisberg, E. Repensando a saúde: estratégias para melhorar a qualidade e reduzir os custos. Porto Alegre: Bookman, 2007. 432 p.
[4] Junior, G; Silva, P; Dain, S (Organizadores). Regulação do setor saúde nas américas: as relações entre o público e o privado numa abordagem sistêmica. Série Técnica Desenvolvimento de Sistemas e Serviços de Saúde, 13. Brasília-DF: Organização Pan-Americana de Saúde, 2006, 400 p. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/regulacao_setor_saude_americas.pdf.
[7] O Código TUSS (Terminologia Unificada da Saúde Suplementar) é uma tabela que padroniza a nomenclatura e os códigos dos procedimentos médicos utilizados na comunicação entre OPS e prestadores de serviços de saúde. É obrigatório desde 2010 e serve para garantir a troca de informações de forma clara e precisa, evitando erros e ruídos na comunicação.
[8] OPME (conjunto de dispositivos médicos): a) órteses: (ex.: coletes ortopédicos, palmilhas, joelheiras); b) próteses: (ex.: prótese de quadril, prótese ocular); c) materiais especiais: (ex.: stents, válvulas cardíacas, parafusos ortopédicos).