Gestão | 2 de julho de 2018

Entre a Insuficiência e o Esbanjamento: A Mentalidade da Escassez

Entre a Insuficiência e o Esbanjamento A Mentalidade da Escassez

Na gestão da assistência à saúde tudo parece imperativo, embora poucas situações portem essa condição. Quando tudo se torna muito urgente, perde-se a noção do conceito de prioridade e os recursos tendem a escoar-se por caminhos não convencionais, às vezes desconhecidos, produzindo perdas que castigam tanto os pacientes/clientes quanto os profissionais de saúde, em particular médicos e enfermeiros, as organizações de saúde e a comunidade servida.

Dizer àqueles que atuam na linha de frente – submetidos ao influxo da pressão implacável da demanda – que precisam reduzir perdas (tempo, materiais, medicamentos, equipamentos, pessoas, recursos financeiros), desperta um sentimento de inadequação próximo do absurdo, uma vez que grande parte do que acontece (falhas, deficiências e incidentes) decorre de uma gestão caótica (tanto administrativa quanto assistencial). Sendo assim, os profissionais de contato direto com os pacientes/clientes e familiares se constituem em vítimas das faltas administrativas que por sua vez, alimentam deficiências assistenciais e vice-versa.

As falhas e defeitos da maioria das organizações de saúde, em particular dos hospitais, derivam de gestores que não distinguem, com clareza, o estágio de desenvolvimento organizacional em que se encontram. Ignorar esse aspecto usualmente conduz a planos desconectados da realidade imediata, os quais ampliam distorções e fortalecem o convencimento de que o principal problema reside na “falta de recursos financeiros”. A gestão, incontestavelmente, pressupõe uma parcela de recursos financeiros, porém não se resume a isso. Aliás, se assim fosse, toda vez que se carreasse recursos financeiros para as organizações em dificuldades, elas retornariam a um estado de equilíbrio em um determinado espaço de tempo. Não é o que habitualmente acontece.

Gerir uma organização de saúde equivale a uma tarefa complexa, instável e tensa. Amiúde são muitos pontos cegos, vieses e anomalias que as sufocam. Para complicar, não existe o hábito de trabalhar com números e, por conseguinte, torna-se difícil identificar os melhores dados e a melhor lógica[1] para conduzi-las a um patamar produtivo e duradouro. Quando essas premissas são ignoradas, qualquer ajuda oriunda do ambiente externo tende a conduzir, no máximo, a uma estabilidade fugaz, uma vez que a força da mentalidade da escassez ampara e reforça condutas distorcidas. Por exemplo, se eventualmente ingressam recursos financeiros, logo serão tragados por áreas não prioritárias. Por conta disso, advirá a mitigação de algumas condições, mas como não atacam os pontos cruciais, os efeitos se expressam na redução da intensidade das deficiências, o que funcionará por um curto período. Adicionalmente, a cada ciclo de recrudescimento da crise as organizações se enfraquecem e se tornam cada vez mais inviáveis.

Não raro, no torvelinho dos variados problemas que sobrepesam nos ombros dos gestores, há uma tendência sedutora de responsabilizar os médicos pelas dificuldades que as organizações atravessam, em especial as financeiras. Culpar os profissionais que representam o fundamento essencial das organizações de saúde produz um alívio psicológico enorme aos gestores e demais colaboradores que os assessoram, mas concretamente não resolve nada, senão incentiva ofensas mútuas e agrava as insatisfações.

As organizações que se encontram no estágio do caos gerencial funcionam com base na mentalidade da escassez. Embora o maior destaque recaia na limitação dos recursos financeiros, falta liderança, falta profissionais qualificados, falta criatividade. A mentalidade da escassez as conduz, como um todo, a agirem de forma regressiva. Mais estranho ainda é o fato de que, na eventual e súbita disponibilidade de recursos financeiros, tenderão a operar de maneira perdulária.

Pelo menos três lições podem ser extraídas da mentalidade da escassez predominante nas organizações de saúde:

As organizações deficitárias possuem gestores e colaboradores precários. Habitualmente os melhores não suportam a mediocridade e as abandonam. Portanto, é reduzida a quantidade de profissionais que, de fato, podem contribuir para reverter a situação deficitária existente.

Os gestores, diante das mais variadas pressões as quais se encontram submetidos, ao conseguirem acesso a uma parcela de recursos, inclinam-se a atuar de forma perdulária.

Os gestores frequentemente responsabilizam os médicos pelas dificuldades econômicas vividas pelas suas organizações.

As três lições recomendam que essas hipóteses sejam substituídas por outras que ofereçam alguma chance de recuperação para as organizações de saúde. Assim, um dos avanços mais expressivos tem sido o reconhecimento de que grande parte da ineficiência observada no setor advém da escassa aplicação do conhecimento gerencial. As organizações de saúde bem-sucedidas estão dedicando, cada vez mais, especial atenção à melhoria da gestão administrativa e assistencial. Os gestores procuram articular, de forma eficiente e eficaz, recursos financeiros, instalações, materiais, medicamentos, tecnologia de diagnóstico e tratamento, assim como pessoas. Por conta disso, boa parte da inovação no momento acontece na gestão – assistencial e administrativa. Torna-se evidente, dessa forma, que a melhoria da assistência, tendo em conta as necessidades e expectativas dos pacientes/clientes, os desejos dos profissionais de saúde e as possibilidades econômico-financeiras das organizações de saúde, via de regra advém de medidas administrativas, não de medidas médico-assistenciais.

A gestão do negócio e a gestão da assistência são faces de uma mesma moeda. Gestores bem-sucedidos entendem essa complementaridade e esquadrinham, obstinadamente, as possibilidades de associar, na justa proporção, necessidades administrativas com necessidades médico-assistenciais, e vice-versa, para o bem dos pacientes/clientes, dos profissionais de saúde, das organizações e da comunidade que servem.

[1] Pfeffer, J; Sutton, RI. A verdade dos fatos: gerenciamento baseado em evidências. Rio de Janeiro: Editora Campus/Elsevier, 2006. 331 p.

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