Mundo | 28 de junho de 2016

Saída do Reino Unido da União Europeia pode ser um desastre na saúde pública

Especialistas e pesquisas traçam um panorama sombrio gerado pela Brexit
saida reino unido

Da proteção à pandemias à segurança alimentar, os riscos para a saúde no Reino Unido são diversos após a decisão dos britânicos pela saída da União Europeia (em uma votação com 52% favoráveis e 48% contrários), realizada no dia 23 de junho.

Oficialmente, o referendo era sobre os prós e contras de permanecer na UE, uma parceria econômica entre os 28 países membros que permite que pessoas, bens e informações tenham tráfego livre dentro do território. Sair desta parceria terá um impacto sobre questões tão diversas como a economia, a investigação científica, força de trabalho, entre outros. Mas a decisão também terá efeitos importantes sobre a saúde pública, principalmente por causa de promessas consideradas enganosas feitas pelos que defendiam a saída.

Os riscos para a saúde pública inglesa são abundantes. Deixar a parceria irá excluir a Grã-Bretanha de investigações, controle de doenças e de drogas e redes de segurança alimentar (que os britânicos só podem manter o acesso se pagarem do próprio bolso). Martin McKee, professor no London School of Hygiene and Tropical Medicine, salientou que o Reino Unido terá problemas na saúde ambiental. Em um artigo sobre a ameaça do Brexit para a saúde pública, publicado no Journal of Public Health, ainda em março, ele citou a perda de normas ambientais europeias sobre ar puro e água, o que poderia gerar um custo à saúde e segurança dos cidadãos.

Isolar-se da Europa vai limitar o compartilhamento de informações sobre doenças, o que é particularmente importante em um mundo onde os micróbios, vírus e outras afecções viajam de forma fluida, utilizando as pessoas como hospedeiros. Questionado sobre possíveis benefícios para a saúde pública, McKee disse que o Brexit não dará “absolutamente nenhuma” vantagem. “Seria totalmente negativo”, disse o pesquisador, ainda antes do referendo. “O prejuízo econômico significaria que o dinheiro disponível para a saúde cairia de forma maciça”. Para o especialista, a alegação de que os novos imigrantes estão consumindo o sistema de saúde é um mito.

De acordo com pesquisa da London University College, recentes migrações no Espaço Econômico Europeu (que inclui a UE, além de Noruega, Islândia e Liechtenstein), contribuiram 34% a mais ao sistema fiscal do Reino Unido do que receberam, de 2001 a 2011. “Os cidadãos nativos utilizaram mais o sistema do que os imigrantes contribuíram ao longo do mesmo período. Isto é, em parte, devido ao fato do Reino Unido atrair jovens, qualificados imigrantes do Espaço Econômico Europeu da Europa ocidental e do sul, e a exportação de seus pensionistas aposentados para países como Espanha e França”.

Uma das principais promessas do movimento pró-Brexit era falsa

Uma das maiores promessas do movimento pró-Brexit (que apoiavam a saída da Inglaterra da União Europeia) era de que haveria o investimento de £ 350 milhões por semana no Serviço Nacional de Saúde britânico. O valor seria poupado pelo Reino Unido após a desfiliação da União Europeia. No entanto, em uma entrevista um dia após o resultado da votação para o programa televisivo Good Morning Britain, Nigel Farage, líder do direitista Partido de Independência do Reino Unido (UKIP) e um dos principais apoiadores da campanha a favor do “Brexit”, reconheceu que essa promessa foi “um erro”, e que na verdade, não se concretizará.

“Eu nunca teria feito essa promessa. Foi um dos erros que eu penso que a campanha pela saída cometeu”, admitiu Farage. A promessa foi reiterada por várias lideranças do movimento pró-Brexit ao longo da campanha para o referendo. O presidente da Autoridade de Estatísticas do Reino Unido, Andrew Dilnot, alertara em maio que esses números eram falsos. O Reino Unido jamais transferira £ 350 milhões por semana para a União Europeia.

Segundo a agência de imprensa portuguesa Cofina, uma sondagem divulgada dia 16 de junho “indicava que 47% dos britânicos inquiridos continuavam acreditando nessa falsidade, enquanto 39% sabiam que não era verdade e 14% não sabiam se era ou não verdade”.

Teorias

Com a mudança, duas teorias surgem: na primeira, o Reino Unido pode aplicar a mesma regra para todos os países e complicar ainda mais as condições de entrada e de trabalho no Reino Unido. Neste caso, os expatriados devem solicitar um cartão de residência. A outra possibilidade é que acordos bilaterais sejam feitos entre Reino Unido e cada país. 

O jornal francês Le Figaro lembra que os britânicos que vivem em outros países podem sofrer consequências. Dos cerca de 200 mil britânicos que vivem na França, cerca de 70 mil são aposentados. Eles estão preocupados com as consequências do Brexit e seus custos para a saúde”. Eles são atualmente cobertos pelo NHS. Existem acordos na Comunidade Europeia para que estrangeiros recebam os benefícios de acordo com os serviços do seu país de origem. Mas agora, há um risco de que estes custos sejam pagos pelo Reino Unido. Residentes que não vêm da União Europeia ou do Espaço Econômico Europeu, como potencialmente os britânicos, podem ter que pagar uma contribuição financeira para serem atendidos.

Consequências para a ciência

Wendy Piatt, diretora geral do Russell Group (que representa 24 universidades do Reino Unido, entre elas Oxford e Cambridge), revelou em entrevista à Sky News que estão em jogo cerca de £ 500 milhões (€ 644 milhões) angariados em vários organismos de apoio à investigação. “A perda desse financiamento seria realmente significativa e não consigo ver como iríamos compensar”, declarou.

Até então, o Reino Unido era o país da União Europeia onde estão baseados mais pesquisadores financiados pelo European Research Council (ERC). Das 6.223 bolsas de investigação concedidas desde 2007 pelo ERC, 1.364 foram para o Reino Unido (22% do total), bem acima de Alemanha (15%), França (13%) e Portugal (1%), por exemplo.

Os defensores do Brexit defendem que a diminuição de estudantes da UE vai abrir mais vagas para estudantes britânicos. O contingente de estudantes chineses, por exemplo, é de longe o mais representativo no Reino Unido. Entre 2014 e 2015, eram 89.540 no total, o equivalente ao número de alunos dos 10 países da União Europeia que mais “exportam” estudantes para o Reino Unido.

A política e a economia têm dominado o debate em torno das consequências da saída do Reino Unido da União Europeia, mas nos setores de Ensino Superior e Ciência, um dos mais lucrativos no Reino Unido, também há razões para preocupação. “A saída [da União Europeia] põe o nosso estatuto de superpotência da Ciência e Ensino Superior em risco”, reiterou Wendy Piatt.

Segundo ela, o principal problema da saída está na redução da colaboração. “Todo o sucesso na sociedade do conhecimento tem por base a capacidade de colaborar com as melhores mentes em todo o mundo, mas particularmente na Europa”.

O reitor da Universidade de Oxford, Chris Patten, afirma que a saída da UE tira o Reino Unido também do centro de decisões sobre o caminho que a investigação europeia deve seguir. “É possível ter um acordo de associação com a UE para atividades de investigação mesmo não sendo membro. É o que acontece com a Suíça, mas eles têm de pagar um preço, que normalmente é a livre circulação de acadêmicos e é também não serem verdadeiramente parte da discussão sobre o tipo de investigação que devemos fazer”.

A Unidade de Inteligência do The Economist publicou um estudo intitulado Mercados de Atenção à Saúde na Europa: Quais seriam os impactos do Brexit? (Healthcare markets in Europe: What would be the impact of Brexit?)

Veja o conteúdo completo, em inglês (aqui)

“A maior parte do debate está focada nas implicações econômicas e políticas, incluindo a necessidade de negociação de acordos comerciais, livre movimentação de trabalhadores e a possível renúncia do 1º Ministro. Todos esses temas terão fortes efeitos para os cuidados à saúde, um setor de suprema importância nacional no qual a União Europeia tem um papel fundamental. O The Economist Intelligence Unit Healthcare vê como uma saída da UE poderia afetar por inteiro o ecossistema do setor saúde”.

O artigo ressalta que estabeleceu “implicações para todos os setores, desde pesquisa & desenvolvimento à área de medicamentos e de prestação de serviços, observando os efeitos nos gastos com saúde, no comércio e investimentos em medicamentos, regulamentações e recrutamento de RH no Sistema Nacional de Saúde e nas empresas”.

Em relação ao setor saúde e à indústria farmacêutica, o The Economist frisa que existem riscos substanciais com a saída do Reino Unido da União Europeia. “Ao longo dos últimos anos integramos duas consultorias especializadas – Clearstate, uma visão do mercado de saúde, e Bazian, um consultor ligado à área clínica com enfoque na medicina baseada em evidências – à nossa equipe de analistas políticos. O resultado é uma prática que proporciona estudos customizados, análises e aconselhamento à indústria assim como a organismos públicos e organizações não lucrativas nas seguintes áreas: estudos de comércio; soluções baseadas em evidências; previsões econômicas e análises políticas; marketing e comunicações; e pesquisas.

O estudo conclui que “a atenção à saúde é um setor de suprema importância nacional, além de se constituir em um foco no qual a Unidade de Inteligência do The Economist tem papel relevante. No momento seguinte à votação do Brexit, as mudanças para o Sistema Nacional de Saúde britânico (NHS) e para a existência das ciências da vida poderão  ser dramáticas”.

Ao longo dos próximos dois anos, o sistema de saúde como um todo seria impactado em vários níveis, diz o The Economist:

– Qualquer depressão na economia britânica poderia gerar um impacto no orçamento da saúde britânica. Mesmo se os ganhos a partir das contribuições do Reino Unido ao orçamento da UE forem realocados à saúde, ainda assim haveria um intervalo nos dispêndios que poderiam impactar os serviços de saúde;

– Uma queda nos gastos do RU com saúde poderiam representar uma dramática demanda para a indústria ligada às ciências da vida, incluindo empresas farmacêuticas. Para os fornecedores de insumos aos serviços de saúde, poderia vir a ser um mercado mais difícil de penetrar. Isso poderia não apenas impactar esses fornecedores, mas também aos pacientes que poderiam não mais ter acesso a todas as opções de tratamento;

– A atenção à saúde é um negócio que funciona na base de regulações, algumas das quais de alcance nacional, mas muitas delas são operacionalizadas dentro de um quadro de referência da União Europeia. Para as empresas fornecedoras de medicamentos o Brexit poderia romper tudo em relação ao desenvolvimento de produtos, aprovação de contas, preços e reembolsos, assim como a movimentação de mercadorias. Poderia trazer um período de incertezas que inevitavelmente deprimiria os negócios;

– A posição atual do RU como referência no mercado europeu poderia ser minada. Isso teria um efeito multiplicador para os investimentos, particularmente para empresas de fora da União Europeia;

– Quanto ao Sistema Ncional de Saúde (NHS), há uma relação de confiança com trabalhadores e expertise de outros países. Trabalhadores, profissionais e funcionários europeus hoje empregados no Reino Unido provavelmente não seriam convidados a irem embora, mas a contratação de pessoal novo poderia tornar-se mais difícil e mais caro;

– O Reino Unido poderia perder força como centro para pesquisa & desenvolvimento e transferência tecnológica. Fundos britânicos para pesquisa poderiam não substituir suficientemente os recursos da União Europeia, especialmente em termos de benefícios de cooperação internacional.

Embora muitas dessas consequências possam ser mitigadas no longo prazo, há pouco espaço para uma visão otimista em relação ao setor de atenção à saúde com o Brexit. “Novidades poderiam trazer imediata ansiedade, tanto para os serviços (NHS, prestadores privados, cuidados domiciliares) e para o sistema de fornecedores (produtos farmacêuticos e de tecnologia)”. Para pesquisadores e acadêmicos, “as consequências seriam menos imediatas, mas com implicações de longo prazo para o sucesso do RU como uma base de pesquisa inovadora”.

O estudo finaliza dizendo que “para o que quer que aconteça, todavia, haverá ramificações – econômicas, políticas, regulatórias – que irão requerer contínuo monitoramento”.

O agora resignatário primeiro-ministro britânico, David Cameron, alertou para a possibilidade de o financiamento do fundo de pensões e do Serviço Nacional de Saúde ficar em risco com a saída da União Europeia. “Os peritos independentes e respeitados dizem que em 2020 vamos enfrentar um ‘buraco negro’ nas nossas finanças públicas de até £ 40 bilhões e nessas circunstâncias o financiamento futuro do NHS pode estar em risco”, disse em artigo publicado no jornal “The Observer”, pouco antes da confirmação da saída. “A nossa capacidade de isolar e proteger a despesa com a saúde também pode estar em risco”, alertou. David Cameron confirmou que iria oficializar a sua demissão após a definição dos resultados do referendo que indicaram a saída do Reino Unido da Europa.

Em um estudo que prevê o impacto da saída do Reino Unido nos 27 países da União Europeia, a Global Counsel (consultora com escritórios em Londres, Bruxelas e Singapura), colocou Portugal no quarto lugar dos Estados-membros mais afetados pelo Brexit. Este estudo leva em conta fatores como a população estrangeira no país, as exportações para o Reino Unido e ainda as ligações bancárias com instituições financeiras britânicas. “Não há uma ou outra razão que façam com que Portugal esteja mais vulnerável que outros países, mas se somarmos tudo Portugal está muito exposto a esta saída. E há até uma falta de coerência, já que os países mais expostos são os que estão mais próximos do Reino Unido geograficamente ou por razões históricas”, avaliou o economista Gregor Irwin, coordenador do estudo da Global Counsel, em entrevista ao portal português Observador.

Paula Vieira, enfermeira de 27 anos, trabalha em um dos maiores hospitais da zona de Londres e diz que só na sua instituição são mais de 500 portugueses. Ela não acredita que os estrangeiros serão expulsos. “Não creio que sejamos expulsos do país, o Reino Unido pode parar completamente. Eles precisam de nós e nos hospitais há muitos enfermeiros portugueses especialmente nas áreas do bloco operatório e dos cuidados intensivos”, afirmou ao Observatório. A enfermeira diz que, mesmo com uma formação completa e domínio da língua inglesa, estrangeiros notam que certos pacientes têm receio em serem atendidos por eles.

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