Mundo, Política | 8 de setembro de 2016

Afinal, quem são os verdadeiros “bloqueadores de leitos”?

Sistema de Saúde Britânico inicia movimento para melhorar a gestão de leitos e o atendimento aos idosos
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O sistema público de saúde britânico (NHS, na sigla em inglês) está enfrentando uma onda de aumento da procura, combinada com dificuldades de administrar as finanças e os cuidados sociais. O impacto dessas pressões é visto em todo o sistema e manifesta-se em demoradas internações hospitalares.

Problema recorrente em outras partes do mundo – como em Porto Alegre, que sofre com a falta de leitos -, a questão foi tema de matéria recente do jornal The Guardian.

O artigo foca na questão do uso dos leitos por idosos, que muitas vezes poderiam ter a assistência feita em outro local. E menciona a relação desproporcional entre o aumento do número de idosos e a estagnação da estrutura ofertada.

“Ano após ano, estes atrasos [para conseguir leito] estão aumentando, com mais pessoas que permanecem no hospital quando não precisam estar lá. Isso tem impacto sobre o atendimento de algumas das pessoas mais frágeis e mais vulneráveis e é objeto de atenção contínua dos meios de comunicação, reguladores de saúde e políticos. No Reino Unido, quando a mídia e formadores de opinião discutem esta questão, é quase inevitável que alguém cite um determinado termo pejorativo: “bloqueador de leito” (bed blocker).

A expressão “leito bloqueado” surgiu no final dos anos 1950, impulsionada pelas preocupações dos médicos em relação à falta de camas nas instituições. “Seu uso cresceu entre 1961 e 1967, quando a população de idosos aumentou 14%, enquanto o número de leitos permaneceu estático. Em 1986, o termo apareceu pela primeira vez em uma manchete do British Medical Journal. Embora não tenha sido aceito como um termo médico, ao longo dos anos 1990 foi amplamente utilizado por economistas da saúde como um marcador de ineficiência”.

O termo persiste até hoje, apesar de muitos esforços para eliminá-lo, como a redefinição do Departamento de Saúde do governo britânico em relação ao atraso nas transferências e altas, feita em 2001. “Certamente chegou o momento de lembrar a quem o termo bloqueador de leito está se referindo. Estes ‘bloqueadores’ são muitas vezes as pessoas mais velhas, que são frágeis e vulneráveis e que simplesmente gostariam de voltar para casa e para suas famílias. A frase ‘bloqueador de leito’ coloca toda a ênfase, e culpa, no indivíduo. A realidade é que o sistema falhou em não se mover rápido o suficiente para oferecer o pacote certo de serviços para que o paciente internado volte para casa”.

Questões de linguagem são muito importantes. “A forma como falamos de pessoas reflete como podemos tratá-las e, no setor saúde, como podemos envolvê-las no cuidado que recebem. Quando paramos de tratar as pessoas como pessoas e ao invés disso usamos a linguagem do sistema (unidades, alvos, bloqueadores) corremos o risco de contaminar o atendimento compassivo do serviço da saúde, que foi criado e aplicado por quase 70 anos”.

O autor do artigo, Johnny Marshall (diretor de políticas da NHS), relatou que raramente ouviu um profissional da saúde usar essa frase. “Aqueles que trabalham com pacientes e cuidam de pessoas, enxergam o indivíduo. Eles sabem das suas histórias individuais e o que importa para elas”.

Menor passividade 

Há uma revolução silenciosa em curso no NHS, diz o diretor. “É cada vez mais reconhecido o fato de que as pessoas devem deixar de serem vistas como receptoras passivas do atendimento, mas sim como participantes ativos, tanto no processo de tomada de decisão quanto nos cuidados que vai experimentar”.

Segundo o artigo, esta é a coisa certa a fazer. É ‘o quê’ as pessoas querem. Mas é também uma resposta à evolução das necessidades de saúde das pessoas. Com mais e mais pessoas sendo tratadas para condições de saúde de longo prazo, as vezes mais de uma doença por vez, a velha abordagem de realizar a consulta, tratar e logo dar alta, é uma coisa do passado. “O serviço de saúde precisa trabalhar com as pessoas para que gerenciem seus próprios cuidados, e isso significa a compreensão de suas circunstâncias individuais, desejos e necessidades. Fazer isso bem também significa olhar não apenas para o serviço de saúde, mas para a vida familiar e outras instituições como governos locais, escolas e comunidades”.

Comissão com foco em idosos

A NHS reuniu especialistas de todo o setor de saúde britânico para formar uma comissão sobre a melhoria de cuidados urgentes para idosos. “Na cidade de Sheffield, novos processos liberam um maior número de pacientes para voltarem para casa, para serem avaliados lá e não em um ambiente de enfermagem. Uma economia de mais de 30 mil leitos/dias foi registrada no primeiro ano de funcionamento e os pacientes relataram melhores experiências no atendimento.”

A North East London NHS Foundation Trust e o London Ambulance Service se uniram para oferecer um atendimento de emergência domiciliar e um pacote de cuidados para as pessoas que sofrem quedas, que resultou em apenas um paciente, em cada 20, internado em uma instituição hospitalar a cada 48 horas. Há exemplos semelhantes em localidades como Derbyshire, Oldham, Greater Manchester, Norfolk, Aintree e por toda a Inglaterra.

A NHS tem um longo caminho a percorrer no sentido de assegurar que esses exemplos se tornem uma abordagem padrão. “Mas o termo ‘bloqueio de leito’ é inútil e sem dúvida um dos mais inapropriados no linguajar da saúde. Vamos colocar o termo no ‘lixo’ e concentrar no que sabemos que funciona tanto para o indivíduo quanto para o sistema de saúde”, conclui o autor do artigo.

Brasil 

Como no sistema de saúde inglês, é comum que muitos governantes e gestores públicos brasileiros  assinalem, cada vez mais, o aumento do número de idosos no intuito de transferir a responsabilidade do problema crônico da falta de leitos. A verdade, é que este fator é apenas uma parte do problema, conforme destaca o médico Cláudio Allgayer, presidente da Federação dos Hospitais e Estabelecimentos de Saúde do RS (Fehosul).

“Cada vez mais ouviremos desculpas neste sentido. É importante que a sociedade e os formadores de opinião não se deixem levar por desculpas que mascarem as causas reais. Há duas linhas que há muito tempo se cruzaram e continuam a se afastar antagonicamente. A dos idosos continua a subir, enquanto a dos leitos ofertados continua em seu movimento decrescente. E esta relação só piora por causa do não enfrentamento correto e responsável da questão de parte dos diferentes governos. Os hospitais são obrigados a fecharem  leitos não por falta de demanda, mas simplesmente por que prevalece o subfinanciamento na saúde. Faltam investimento, integração, controle e gestão. E ainda, uma visão global e mais inteligente, com o uso de equipamentos alternativos, menos custosos, como a assistência ambulatorial resolutiva e a internação domiciliar para casos menos graves”, destacou Allgayer.

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